Vale a pena começar desmentindo o meme e afirmando que não sou nem me tornei um especialista em Oriente Médio ou na “questão palestina”.
O que é fora de dúvida é que o tema desbordou totalmente o círculo de especialistas e substituiu o conflito na Ucrânia como sintoma mais agudo das tensões que marcam o processo de desmonte da ordem internacional em vigor desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Se o futuro próximo nos reserva uma Terceira Guerra Mundial ou um novo rearranjo estabilizado por mais algumas décadas, ninguém pode saber ao certo, embora esteja difícil encontrar indícios que fortaleçam a segunda hipótese.
O que está claro é que o grau de violência física e moral, do que se tenta apresentar como resposta de Israel ao ataque do Hamas, desbordou a capacidade de justificativa e apaziguamento da grande mídia internacional e dos governos alinhados aos Estados Unidos.
Se não é possível prever a escala da catástrofe humanitária do genocídio em andamento nem suas implicações na geopolítica do Oriente Médio, já está claro que os EUA e seu protetorado israelense estão perdendo a batalha pelos corações e mentes do próprio Ocidente.
Ninguém parece duvidar que será difícil a Benjamin Netanyahu sobreviver politicamente ao final do massacre de Gaza, a menos da implantação de uma ditadura aberta, que já vinha encontrando enorme resistência da sociedade civil israelense.
As tentativas de calar as críticas ao genocídio caracterizando-as como antissemitismo não resistem ao crescente ativismo de organizações de judeus, inclusive ortodoxos, manifestando-se contra a fascistização do Estado de Israel e a favor da convivência com os palestinos.
Talvez seja cedo para dizer que Joe Biden encontrou o seu Vietnã, mas a pressão dos financiadores das grandes universidades norte-americanas não parece capaz de calar as crescentes manifestações pelo imediato cessar fogo de estudantes e professores. E não parece razoável que o Kings College de Londres expulse ou consiga calar os estudantes e docentes que pedem o mesmo.
Além de manifestações multitudinárias nas ruas de capitais europeias ou nos campos de futebol, as denúncias do caráter desumano e genocida da ação e das manifestações das autoridades israelenses vem de todos os lados. Do médico norueguês Mads Gilbert, que vem coordenando um dos principais hospitais de Gaza há 16 anos ao diretor do escritório novaiorquino do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Craig Mokhiber que se demitiu em protesto “contra o genocídio e a inoperância da ONU”.
Kobi Gideon, GPO
Premiê de Israel em visita a uma instalação militar
Filippo Grandi, o Alto Comissário da ONU para os Refugiados, registrou que as últimas semanas “forneceram provas devastadoras de que o desrespeito pelas regras básicas da guerra, o direito humanitário internacional, está a tornar-se cada vez mais a norma e não a exceção, com civis inocentes mortos em números sem precedentes” e até mesmo o até agora anódino secretário-geral da ONU, o português António Guterres, foi instado a fazer declarações públicas que, ainda que sensatas e ponderadas, provocaram o pedido de sua renuncia por Israel.
Há várias perguntas reiteradas nestas quatro semanas e não respondidas até agora. Qual foi o cálculo do Hamas, na medida em que era óbvio que Netanyahu e o governo de extrema direita reagiriam numa escalada de violência inédita, seja pela sobrevida do governo seja como tentativa de aproveitar a comoção internacional pela brutalidade do ataque? E como explicar – ou acreditar – que os serviços de inteligência mais poderosos do planeta não tenham tido conhecimento prévio da ofensiva?
Mas é marcante a quase total ausência na cobertura de imprensa – e não apenas na grande mídia corporativa – da pergunta sobre o elemento capaz de conectar a brutalidade local ao movimento das placas tectônicas da geopolítica internacional: a guerra da energia.
Desde o final da década passada, relatórios da UNCTAD* chamam a atenção para a descoberta de reservas petrolíferas da ordem de 1,7 bilhões de barris, além do gás natural, na faixa litorânea de Gaza. Isso é pouco mais de 20% do pré-sal brasileiro. Mas sua exploração representaria um salto brutal no PIB palestino se lembramos que entre a faixa de Gaza e a Cisjordânia se constitui uma população de menos de cinco milhões de habitantes.
À luz da frustação das sanções econômicas contra a Rússia, que levou à explosão do Nord Stream 2 (que, curiosamente, ninguém chamou de terrorista) e do pânico da União Europeia quanto ao seu futuro energético, entende-se a importância da oferta feita por Netanyahu à Itália e Grécia para a construção de um gasoduto ligando seus próprios campos de gás à Europa. Como esses campos são offshore, a anexação de Gaza teria o potencial de multiplicá-los.
Não é o caso de ignorar o peso de ressentimentos históricos, preconceitos e ódios ancestrais. Mas também não custa lembrar que seguir o dinheiro continua sendo um bom conselho.
(*) Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.