Uma parte importante da sociedade colombiana celebrou no dia 2 de julho o aniversário de uma das mais engenhosas, corajosas, espetaculares e ilegais operações militares dos últimos tempos.
A Operação Xeque-Mate (‘Operación Jaque’, em espanhol) passou para a história como um êxito incontestável e imaculado. Por meio dela, um grupo de militares enganou um comando guerrilheiro das FARC (Forcas Armadas Revolucionárias da Colômbia) em plena selva de Guaviare, salvando um grupo de valiosos reféns.
Na ação, gigantescos helicópteros Mil Mi-17 pintados de branco – disfarçados de helicópteros de resgate da Cruz Vermelha – aterrissaram num ponto da selva para uma suposta operação humanitária. Os guerrilheiros acreditaram na história e, não apenas entregaram os 15 sequestrados para a equipe, como dois deles acabaram capturados depois de também subir nas aeronaves.
Leia mais:
La Macarena: onde os mortos não têm nome
Perfil: Piedad Córdoba, a lutadora que não espera gratidão
Iván Cepeda, uma biografia vinculada à luta pela paz na Colômbia
Presidente da Colômbia nega haver acampamento das FARC na Venezuela
Wikileaks: Impunidade no governo Uribe fortaleceu paramilitares na Colômbia
Entre os reféns libertados estava a senadora colombiana Ingrid Beatencourt e três cidadãos americanos.
Em termos estritamente militares, foi admirável. Mas tal façanha só foi possível porque a força de resgate violou uma das normas mais elementares do Direito Internacional Humanitário, ou Direito da Guerra. Em outras palavras, a Colômbia pode ter cometido um crime de guerra conhecido como “perfídia”, sem pagar por isso.
Pouco se fala sobre esse crime. Na verdade, a Wikipedia, por exemplo, nem o menciona. Para as gerações futuras, a Operación Jaque será, portanto, um êxito. Ponto.
Um exemplo de como a história foi reescrita, está na entrevista dada em julho à rede britânica BBC pelo general da reserva do Exército colombiano Mario Montoya. (A entrevista foi reproduzida em todo o mundo. Aqui, por exemplo, há a publicação do jornal chileno La Tercera).
Na entrevista, Montoya – que era comandante do Exército Nacional da Colômbia no momento do resgate e hoje é embaixador na República Dominicana – referiu-se à Operação Xeque como “a mais importante operação militar e de inteligência realizada na história recente dos Exércitos modernos do mundo. Uma obra-prima”.
Leia mais:
Uribe usou arquivos das FARC para incriminar Chávez e Correa, revela Wikileaks
Após invalidação de arquivos das FARC, políticos afetados devem questionar decisões na Justiça
Supremo colombiano declara que arquivos do computador de 'Raúl Reyes' não têm validade
Forças obscuras: quem são os paramilitares e a extrema-direita na Colômbia
Ingrid Betancourt: “Durante muito tempo me senti abandonada pela Colômbia”
Pôr em evidência o crime cometido pelo Exército não depõe contra o valor humano de ter retirado 15 pessoas do que era um verdadeiro inferno na selva. Mas é chocante constatar como a punição às violações internacionais são sempre mais brandas quando mais perto dos EUA está um determinado país. Neste caso, os americanos forneceram informações produzidas por satélites que possibilitaram o sucesso da operação.
O crime de perfídia – reconhecido publicamente pelo então presidente colombiano Álvaro Uribe – é grave. Fazer com que militares se disfarcem de grupos humanitários traz graves problemas, especialmente para as vítimas dos conflitos, porque:
1. Mina a confiança dos beligerantes nos atores neutros, alimenta um clima permanente de paranóia e desconfiança que trava qualquer operação humanitária que pretenda ser segura
2. Põe em risco centenas, às vezes, milhares de trabalhadores humanitários, que podem ser confundidos em futuras operações com militares novamente disfarçados
3. Impede que milhares de civis recebam assistência humanitária, já que grupos guerrilheiros, desconfiados pela experiência negativa, podem passar a impedir o trânsito de equipes de resgate, sob a suspeita de que estas são, na verdade, equipes militares disfarçadas
Não faltará quem diga que a Operação Xeque não foi tão ruim assim, já que, como Montoya mesmo diz, terminou sem nenhum disparo e nenhum morto ou ferido.
Esta não é, entretanto, uma verdade completa. Como os três pontos anteriores mostraram, os riscos à vida dos trabalhadores humanitários aumentam indefinidamente depois de golpes à credibilidade como este.
Ao assinar as Convenções de Genebra, os países signatários assumem uma dupla responsabilidade: a de respeitar as regras da guerra e a de fazer respeitar. Isso significa que não basta zelar pela aplicação das normas dentro de suas Forças Armadas, mas também pressionar outros atores estatais – principalmente, embora não exclusivamente – para que também o façam.
No caso da Operação Xeque, não há notícia de que muitos países tenham levantado a voz para criticar o crime de “perfídia” cometido pela Colômbia. Não é de surpreender. As normas da guerra sempre recaem com maior peso sobre os Estados menos expressivos politicamente. Esta é uma distorção recorrente que o Direito não conseguiu corrigir.
Siga o Opera Mundi no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
NULL
NULL
NULL