Em 18 de setembro, milhões de escoceses irão às urnas votar em um referendo pela independência do país do Reino Unido da Grã Bretanha e Irlanda do Norte. Pelas pesquisas divulgadas até o momento é impossível saber qual será o resultado, mas há a certeza de que a mera existência de tal referendo é um marco.
Caso semelhante de grande repercussão, o da separação do Quebec do Canadá, acabou com a vitória dos unionistas por pequena margem nos anos 90 e desde então o nacionalismo “quebequense” encontra-se em banho-maria.
A Escócia de William Wallace, famoso guerreiro pela liberdade de seu povo nos séculos XIII e XIV e retratado no grande sucesso do cinema “Coração Valente”, de Mel Gibson, em 1995, nunca aceitou totalmente os acordos e arranjos reais que acabaram por uni-la definitivamente ao resto do Reino Unido (na concepção escocesa, unidos à Inglaterra, real “cabeça” deste emaranhado de nações). Chegou o momento de medir forças e buscar um novo caminho.
Alex Salmond, primeiro ministro da Escócia e principal líder do Scottish Nacional Party (SNP), batalhou para conseguir um acordo com Londres e pelo referendo em marcha. Na visão dos ingleses, uma separação parecia improvável. Salmond propôs um referendo com três questões: Sim, pela independência; Não, pela manutenção da união; e uma terceira opção em que buscava mais autonomia.
Seguros da vitória do “não”, lideranças inglesas impuseram um referendo com apenas duas alternativas, sim e não. Nas últimas semanas, porém, se viu um crescimento vertiginoso do “sim”, que em ao menos uma pesquisa chegou a ultrapassar o “não” e por em perigo a união da Escócia com o resto do reino. Foi o momento de novas negociações e tentativas de convencer líderes escoceses de que, vejam, só, mais autonomia poderia ser garantida.
É muito tarde para recuar, no entanto.
A Catalunha, por sua vez, busca realizar uma consulta à população em 9 de novembro de 2014. Diferentemente da situação escocesa, a Espanha se nega a aceitar que os catalães exerçam este direito e a recusa tem acirrado os ânimos e explica em parte as previsões de uma vitória esmagadora da opção pela independência.
Unidos à força desde 1714, a relação da Espanha com a Catalunha sempre foi tumultuada, conflituosa. O castelhano nunca foi totalmente assimilado pela população catalã, cuja maioria absoluta emprega o catalão como língua veicular e o ensina nas escolas, pese históricas tentativas de suprimi-lo, em especial durante a ditadura de Franco. O “catalanismo” sempre foi um sentimento muito forte, mas a crise que abalou a Europa e que ainda permanece como uma nuvem negra no horizonte acabou por empurrar ainda mais os catalães em direção à rota da independência.
Há semelhanças entre as situações catalã e escocesa no que tange a questões econômicas e sociais. Recortes de benefícios sociais e o excesso de imposto pago por estas duas nações, respectivamente, a Londres e Madri fizeram crescer um sentimento de injustiça que, aliado a outras formas de opressão cultural e mesmo aliado à uma história larga de conflitos e conquista, acabaram por impulsionar o sentimento nacionalista.
Em ambos os casos há também semelhante o terrorismo praticado por bancos e grandes empresários que ameaçam mudar as sedes de suas empresas para Londres e Madri na tentativa de usar a pressão econômica para manipular e pressionar a vontade popular.
O fenômeno político do Podemos, partido de esquerda nascido dos movimentos de rua, dos Indignados e das mobilizações contra as políticas de austeridade durante o auge da crise econômica ajuda a explicar um pouco o que se passa com Escócia e Catalunha na questão da representação.
Tanto o Podemos quanto diversos movimentos pelo mundo, como os Occupy's iniciados nos EUA, a Primavera Árabe e mesmo os protestos de Junho de 2013 no Brasil demonstram uma guinada geral para um modelo mais participativo da e na política, por uma democracia (mais) direta e por menos poder nas mãos de políticos distantes.
NULL
NULL
Escócia e Catalunha têm o interesse de aproximar o centro de poder de seu povo, aproximar o centro de decisões traçando linhas étnicas e culturais e acentuando diferenças ao ponto de declarar que “os outros” não “nos” entendem como “nós” nos entendemos.
É curioso notar, porém, que este sentimento nacionalista destas nações (e aqui inclui também o forte nacionalismo basco) não tem nada de xenófobo ou excludente. Pelo contrário. São movimentos que, em geral, têm grande apreço pelo imigrante que busca integrar-se – e estes são buscados a integrar-se -, que busca compreender o que se passa. São movimentos nacionalistas, baseados em identidades culturais e étnicas que, ao mesmo tempo, são abertos ao diferente e ao que vem de fora aproveitando uma sinergia entre os diferentes. Pode parecer contraditório, mas faz todo sentido, pois parte da força destes movimentos hoje vêm exatamente da maior participação social e horizontal que converge em um sentimento de identidade local.
O direito de decidir é parte do processo democrático, é horizontal, é agregador, ao passo que busca corrigir erros históricos e imposições horizontais vindas de longe. Quanto mais proibição, maior se torna o movimento e mais inclusivo também. A intenção de catalães e escoceses é buscar um caminho próprio, mas não excludente.
Porém, Catalunha e Escócia sustentam diferenças significativas. A principal delas sendo o modelo de decisão. O referendo escocês é legal, irá acontecer com o apoio de Londres e seu resoltado será respeitado (acredita-se). No caso catalão uma consulta seria ilegal, feita na base da desobediência civil e seu resultado dificilmente seria respeitado pela Espanha, trazendo incertezas inúmeras.
Se por um lado é fato que a principal razão para que o referendo aconteça na Escócia seja ou tenha sido a certeza inglesa de que o “não” venceria (e não em si um respeito pela democracia), por outro o referendo sairá e a democracia foi respeitada – a decisão final cabe à população escocesa.
Já na Catalunha, partidos “espanholistas” como o PP catalão, setores do PSC (PSOE catalão) e Ciutadans apoiam a decisão de Mariano Rajoy, primeiro ministro espanhol, do PP, de se recusar a permitir a consulta, decisão respaldada também pelos tribunais. Apesar dos discursos de que tais partidos respeitam a democracia, não são capazes de aceitar que a população exerça livremente seu direito ao voto, ou seja, trata-se de uma democracia apenas em relação ao que o governo permite.
Para além das diferenças e semelhanças básicas, fica a questão sobre qual efeito terá a consulta escocesa sobre o eleitorado catalão e, mais além, se o governo catalão – Generalitat – capitaneado por Artur Mas, irá levar adiante uma consulta baseada no princípio da desobediência civil – opção apoiada por forças de esquerda nacionalista.
A vitória do “sim” na Escócia poderia ter junto à população catalã o mesmo efeito que jogar gasolina no fogo, mas ao mesmo tempo poderia tornar ainda mais intransigentes as lideranças espanholas em seu rechaço ao exercício democrático. Ao contrário da Escócia, onde o “não” é o favorito, a ampla maioria social catalã apoia a independência. Uma virada do “sim” na Escócia, baseado no princípio democrático, acenderia a luz vermelha na Espanha, demonstrando que a opção por impedir o processo democrático estaria “correta”.
Por outro lado, uma vitória do “não” na Escócia teria pouco efeito tanto na Catalunha quanto na Espanha, dado que dificilmente o insucesso de um processo em que desde o começo o “não” liderava faria com que população catalã ou governo espanhol mudasse de posição.
O fato de um referendo ser legal e outro (no caso, uma consulta) ser ilegal acaba por, na prática, diminuir os efeitos – positivos ou negativos – de um sobre o outro. Em outras palavras, o referendo escocês teria a capacidade de traçar um caminho para muitas nações e minorias europeias, ao mesmo tempo em que também iria elevar os alertas de governos estatais que porventura sintam sua unidade ameaçada, mas teria pouco efeito prático sobre a vontade catalã e o rechaço espanhol.