O dia 24 de julho de 2021 marca a entrada em cena de jovens moradores das periferias de São Paulo na luta pela derrubada de Jair Bolsonaro. Jovens periféricos que se cansaram de apenas fazer número em manifestações ultrainstitucionalizadas, organizadas pelos partidos políticos de esquerda e pelas organizações tradicionais de trabalhadores. Sempre na avenida Paulista, centro financeiro do País — tão distante em todos os sentidos dos bairros pobres da
Organizados em algumas das principais favelas de São Paulo, esses jovens, autodenominados “Revolução Periférica”, têm profunda consciência de classe. E ela não veio das leituras teóricas, às quais muitos deles dedicam-se com afinco há bem pouco tempo. Foram as letras do rap, principalmente na voz dos Racionais MC’s, que mostraram a eles que o Estado burguês é uma máquina de guerra permanente contra os pobres, os negros, os indígenas, os habitantes das periferias. Que o genocídio é um projeto de País, não um acidente de percurso.
A morte mais cruel é vizinha desses jovens. Os nove meninos e meninas mortos depois de uma ação desastrosa da PM em Paraisópolis, os 62 tiros disparados pelo Exército contra o carro de um sambista que estava com a família no Rio de Janeiro, o assassinato de Marielle Franco, o massacre na favela do Jacarezinho são apenas exemplos de violência que conseguiram realce ante a permanente indiferença do establishment com as vidas dos mais vulneráveis.
A periferia está com raiva…
E é por isso que eles não se sentem representados pelos atos bem comportados da avenida Paulista, um falatório jogado ao léu, de cima de carros de som a que poucos escutam, guardados por seguranças que decidem quem sobe e quem desce.
A avenida Paulista fala do genocida Bolsonaro. De genocídio, no entanto, quem entende mesmo é a periferia de São Paulo. “Revolução Periférica” sabe que não começou com Bolsonaro, embora o capitão-miliciano tão bem o represente. E foi por isso que esses jovens se uniram em assembleias populares para planejar a ação contra a estátua monstruosa do bandeirante Manuel da Borba Gato, símbolo do Genocídio convertido em Heroísmo, no dia de mais um protesto pelo #ForaBolsonaro na avenida Paulista.
Primeiro, repassaram a biografia do Borba Gato. Bandeirante, especializou-se em massacrar, escravizar, roubar, assassinar, torturar e corromper. Indígenas experimentaram toda a dor que a cobiça e a ambição podem gerar, já que eram escravizados para suprir com mão-de-obra as lavouras de cana-de-açúcar do Nordeste. Outra especialidade era a caça aos escravos negros fugidos e a repressão aos quilombos. Borba Gato era um miliciano, numa época em que não havia câmeras e nem leis. Matou à vontade quem quis matar.
Punição? Nenhuma. Ao contrário. Teve perdão para o assassinato de um fidalgo a serviço do Império Português na Colônia do Brasil (a única das vidas que ceifou a ser contada em sua biografia oficial), ganhou comenda para o pescoço, honras, glórias, privilégios. E, por fim, em 1963, a estátua encravada no bairro de Santo Amaro, obra do escultor Julio Guerra (1912-2001).
A ação foi cuidadosamente planejada. Estudada. Cronometrada. A estátua, radiografada. A periferia entendeu como foi construída, com trilhos de bonde servindo-lhe de esqueleto –difícil derrubá-la já que a gigantesca escultura de 10 metros de altura (13 metros contando seu pedestal) pesa 20 toneladas (3 toneladas só a cabeça).
Então, puseram-lhe fogo! E que fogo! Centenas de pneus velhos foram empilhados no pedestal pelos jovens em apenas 2 minutos. Daí, foi jogar gasolina e… FOGO! As labaredas e a fumaça preta envolveram o corpo do assassino. A cena era tão surreal que levou os policiais militares que atenderam à “ocorrência” a uma espécie de estupor. Todos apontavam as câmeras de seus smartphones para o fogaréu de onde mal se viam os contornos do bandeirante.
“Não podemos permitir que esse símbolo do Genocídio se perpetue. Borba Gato fez parte do passado, mas não precisa fazer parte do nosso presente. Homenageá-lo é perpetuar o culto ao assassino que ele foi. É uma afronta a todos os espíritos dos homens e mulheres que ele matou. Manter Borba Gato em seu pedestal significa uma autorização para que, amanhã, sejam construídos monumentos para homenagear o genocida Jair Bolsonaro ou os milicianos que atuam nas favelas de todo o País, semeando a morte”, disse um dos jovens à reportagem dos Jornalistas Livres.
Que a direita reivindicasse respeito ao assassino, seria normal. Defendendo Bolsonaro, porque não defenderia Borba Gato?
O que foi surpreendente, entretanto, foi o clamor entre setores da esquerda mais conservadora contra a ação dos jovens periféricos:
— Vandalismo!
— Violência!
— Porra-louquice irresponsável!
Trata-se de pura ignorância. Em todo o mundo, espalham-se as ações contra os monumentos e homenagens a genocidas e outros monstros morais que, vencedores, seguem espezinhando “os corpos dos que estão prostrados no chão”, segundo o filósofo Walter Benjamim. (obrigada, Lucas!)
Quanto à violência periférica, mirem-se no exemplo dos Estados Unidos.
Donald Trump estava virtualmente reeleito, segundo todas as pesquisas de intenção de votos, até que o povo negro das quebradas americanas se levantou, colocando fogo em delegacias, destruindo cidades inteiras, em protesto contra o assassinato de George Floyd em Minneapolis no dia 25 de maio de 2020, estrangulado pelo policial branco Derek Chauvin, que ajoelhou em seu pescoço durante uma abordagem.
Foi essa energia revolucionária que impediu a continuidade do governo da extrema-direita supremacista americana, representada por Trump.
A esquerda coxinha, que quer fazer acordos com o Centrão para derrubar Bolsonaro, e repudia a energia e a autonomia da juventude pobre que integra o coletivo “Revolução Periférica”, ainda pode respirar aliviada porque a raiva focalizou-se até agora na estátua de pedra. Mas não será sempre assim. Apenas imagine o que estará passando pelas mentes dos meninos e meninas que viram o genocida ardendo. A temperatura sobe. Vem mais luta pela frente!