É muito curioso que as cúpulas políticas da União Europeia (UE) e seus tradicionais porta-vozes, os políticos, economistas e a grande imprensa que, durante décadas, sustentou e defendeu esse projeto, não deram mostras de alegria e confiança pela ordem irreversível ter sido mantida com a derrota humilhante ao governo e ao povo da Grécia.
O primeiro-ministro grego, Alexis Tsipras, foi derrotado e submetido a um “sacrifício ritual” pelo ministro alemão de Finanças Wolfgang Schäuble, que age como o “guardião do templo” de um fundamentalismo de mercado que é a verdadeira natureza da UE, que não tolera o menor desvio ou interpretação do dogma.
Fora esses guardiães do templo, ninguém na UE parece realmente feliz ou satisfeito com essa vitória esmagadora. Basta dar uma olhada no que muitos crentes do euro descreveram na “grande imprensa” – o que faremos mais adiante – para compreender que esta foi uma vitória pírrica, e que se o [partido] Syriza e o povo grego foram derrotados e humilhados, foi com o elevadíssimo preço de expor o sistema antidemocrático da UE, sua rigidez institucional e o insensato dogmatismo que levou, inclusive, a criar um mecanismo de negociação sem existência legal – o Eurogrupo – para “asfixiar mentalmente” (mental waterboarding) os representantes governamentais dissidentes, neste caso de um governo que unicamente procurava proteger seu povo das brutais políticas de austeridade que vem sofrendo dia após dia, ano após ano, e de renegociar uma dívida pública ilegal e impagável.
EFE
Tsipras após posse, no início do ano, em Atenas, capital grega
Não é menos curioso que nestes momentos a derrota humilhante da Syriza não seja vista por muitas forças da esquerda como o que na verdade é: uma complexa e difícil experiência que além das suas consequências negativas está carregada de ensinos positivos e de objetivos políticos a curto e longo prazo, tanto pelas lideranças políticas do campo popular como para os povos.
A trágica experiência vivida pelo Syriza confirma que o sistema do fundamentalismo de mercado da UE não pode ser mudado jogando as regras do jogo; nesse sentido, essa experiência política deveria ser vista como o divisor de águas político e ideológico das lutas populares para recuperar a soberania nacional e popular, para lutar contra o sistema neoliberal totalitário da UE e do imperialismo em geral, um sistema que já mostra os primeiros sinais de caminhar para o colapso.
Nesse momento tão difícil, talvez porque no caso grego haja uma humilhação insuportável frente à “máfia” da UE, é que pessoalmente não posso tirar da minha cabeça que depois da terrível derrota no ataque ao Quartel Mocada, que muitos interpretaram como o fim da experiência “aventureira” para derrotar a ditadura mafiosa e pró-imperialista de Fulgencio Batista em Cuba, Fidel Castro não apenas se defendeu com seu discurso A História me Absolverá, mas com ele proporcionou as armas políticas e ideológicas para prosseguir e ampliar a luta para recuperar a soberania e a dignidade do povo, até alcançar a vitória final poucos anos mais tarde.
Não se trata de seguir o exemplo de Cuba, mas de saber que há derrotas que, bem assimiladas, conduzem a vitórias reais dos povos.
Como a “vitória” da UE é vista nos grandes meios de comunicação?
A capitulação do primeiro-ministro grego Alexis Tsipras ante a União Europeia foi inevitável desde o momento no qual o Eurogrupo, sob a batuta de Schäuble, colocou na mesa que se não existia rendição total e incondicional, a Grécia seria expulsa da zona do euro. Foi a partir desse momento e em condições de legalidade duvidosa, como veremos mais adiante, que o ditado de condições substituiu a negociação e que se selou tanto o destino imediato do governo e o povo da Grécia, mas também o da UE.
Prova de que o “catalisador” grego funcionou, acelerando o processo de trazer à luz a verdadeira natureza da UE, são as nunca antes vistas reações dos meios de comunicação, agências e jornais de grande tiragem.
No Irish Times, por exemplo, um artigo expressa que atormentar a Grécia é como enviar uma mensagem de que agora estamos vivendo uma nova UE. “A UE como a conhecemos acabou durante o final de semana. O projeto da UE era sobretudo uma convergência gradual de nações iguais em direção a uma “união mais próxima”. Isso terminou (…) tanto que a instituição coercitiva chegou a um estado de divisões profundas. Não há maior divisão que (a existente) entre quem é castigado e os castigadores” (1).
Sobre a ameaça de uma expulsão da Grécia da zona do euro o diário irlandês aponta que “a longo prazo importa menos que essa ameaça não tenha sido levada adiante que o fato de que tenha sido feita e considerada aceitável. Depois de isso ter acontecido, todos os projetos europeus irreversíveis se tornam reversíveis, e o irrevogável se torna revogável”, e sobre a “disciplina financeira” baseada internacionalmente em que todas as dívidas devem ser pagas, o diário aponta que é duvidosa, “considerando que, em março, o FMI, quase sem alvoroço, anunciou um pacote financeiro para um país europeu (Ucrânia) que é de longe mais corrupto, instável e oligárquico que a Grécia”.
Em “Pontos de Vista” da agência Bloomberg, Clive Crook escreve que “este desastre pertence à Europa”, que o “acordo” ao qual a Grécia teve de se submeter, e a maneira como foi obtido, põe em questão o julgamento da totalidade do projeto europeu: “a saída do sistema euro tem sido agora contemplada pela Alemanha e por outros países, e não como horrível, senão como um remédio para ser aplicado deliberadamente. Isso não pode ser desaprendido. Seguirá como uma ameaça contra a Grécia: também pour encourager les autres”, como se diz.
E Crook completa que “essa crise demonstrou a impressionante incapacidade da UE para governar. A disfunção dos últimos meses tem sido uma educação, pelo menos para mim. A indecisão patológica foi institucionalizada (…). A UE está presa em um terreno médio insustentável. A moeda comum torna necessária uma união política mais estreita, a forma como o sistema funciona torna impossível uma união política mais estreita. Não escutamos o último dos ‘exit’ (2).
“Já é suficiente: a Grécia deve deixar o sistema do euro”, diz um artigo dos editores da agência Bloomberg, no qual apontam que “os termos impostos ao primeiro-ministro Alexis Tsipras no final de semana passado têm poucas possibilidades de serem aceitos, aplicados e sustentados pelo governo grego ou seus sucessores. O Parlamento grego talvez os aceite porque pensa que a alternativa é pior – e no curto prazo isso talvez seja verdade. No longo prazo, um acordo imposto sob uma dureza extrema e amargamente ressentido pelos gregos não será um êxito. A confiança colapsou a ponto de que se disse à Grécia que ela deve se transformar em uma colônia da UE, que não é uma Estado soberano (…).
Não importa o que aconteça nas próximas semanas, a Grécia pode terminar saindo do sistema do euro. Uma saída agora será dolorosa, certamente. Os riscos para o restante da Europa não são pequenos. Mas a Grécia estará pelo menos comandando seu próprio futuro, sem ter de culpar alguém por seus problemas. Quanto mais rápido isso acontecer, melhor será” (3).
Um editorial do diário canadense Globe and Mail, intitulado “Culpem Berlim: Por que o acordo com a Grécia está condenado ao fracasso?”, afirma que um dos mais preocupantes aprendizados do que aconteceu nas negociações é que a “zona do euro, agora vemos, não é realmente uma união monetária. Seu membro mais forte, a Alemanha, pode ameaçar os membros mais fracos a impedi-los de usar (o euro) e a tirar proteção. Se Berlim não gosta das suas políticas fiscais, pode empurrar essas economias para o caos. A perda de membros da zona do euro era até há pouco um perigo que os políticos europeus queriam evitar a todo custo; agora se transformou em uma oportunidade de chantagear que não se pode deixar passar. Isso parece uma vitória completa para a Alemanha, para a chanceler Ângela Merkel e o ministro de Finanças Wolfgang Schäuble. A longo prazo, a destruição da economia da Grécia talvez sirva de embasamento para uma Europa mais unificada, dirigida pela Alemanha. Ou talvez marque o momento em que começa a se desfazer o largo movimento em direção a uma integração da Europa. A Alemanha teve a sua grande vitória sobre a Grécia; é muito provável que cedo ou tarde se provará que foi pírrica” (4).
Por sua vez, nada menos que o FMI, um dos membros da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI) reconfirma que a receita aplicada a Grécia é insustentável. Em seu resumo “Análise preliminar sobre a sustentabilidade da dívida”, do dia 14 de julho de 2015 (relatório público 15/186) que segue o documento similar do FMI de junho passado, diz o seguinte: a dívida pública da Grécia se transformou em muito insustentável. Isso é devido às políticas de alívio do último ano, para as quais contribuíram no último ano a recente deterioração macroeconômica no plano doméstico e no âmbito financeiro pelo fechamento do sistema bancário (corralito), o que contribuiu significativamente para uma dinâmica adversa. O financiamento necessário até o final de 2018 é agora de 85 bilhões de euros e a dívida chegará a 200 por cento do PIB nos próximos dois anos, sempre que haja um acordo cedo em um programa. A dívida da Grécia somente pode agora ser sustentável por meio de medidas que vão muito além do que (a UE) está disposta a aceitar até o momento”.
Carlos Latuff/ Opera Mundi
NULL
NULL
Guardião do templo e diretor da orquestra
A capitulação era previsível, assim como a humilhação e as pressões às quais Tsipras foi submetido nas reuniões depois que o “diretor da orquestra” do Eurogrupo, o ministro alemão Schäuble, exigiu que para continuar com as “negociações” que o ministro grego de Finanças, Yanis Varoufakis, fosse substituído (5).
Um a um os véus que protegiam os olhos europeus da feia nudez da UE foram caindo nessa “negociação” na qual a Grécia foi obrigada a capitular sob a ameaça de ser expulsa da zona do euro, e o primeiro véu a cair foi o de que todos os países são iguais e se negocia respeitosamente: “nos puseram uma faca na garganta”, disse Alexi Tsipras, enquanto Varoufakis disse que “negociou com uma pistola” na têmpora. Para que Tsipras aceitasse “entregar a soberania” de seu país – disseram “alegremente os funcionários de UE, foi submetido a um mental waterboarding” (uma asfixia mental), reporta o diário Irish Times (nota 1);
Outro dos véus que caiu é a resposta que Varoufakis recebeu quando pediu que o Eurogrupo lhe dissesse qual era a base legal da ameaça de expulsão da Grécia da UE, que tinha recebido um pouco antes. Varoufakis, em entrevista ao NewStatesman (ver nota 5) disse que não teve resposta porque os especialistas da UE lhe disseram que o Eurogrupo não tem existência legal, pode dizer e fazer o que lhe dá vontade e não deixa rastros porque não guarda as minutas das discussões.
Tsipras, ou seja, o governo de Syriza amparado por um referendo bem sonoro, tinha ousado pedir mudanças sensatas a esse fundamentalismo neoliberal da UE: reduzir as políticas de austeridade e renegociar parte da dívida externa que justifica tais políticas para aliviar o fardo do desemprego e da pobreza aguda que está esmagando o povo grego, e poder ter desenvolvimento econômico para pagar as dívidas.
Em artigos anteriores dizíamos (6) que, com esse pedido, a Grécia seria o catalizador que aceleraria a tomada de decisões e aprofundaria o sistema de “governança” destinado a aplicar a pauladas as políticas da Troika e eliminar definitivamente qualquer vestígio de soberania nacional e popular. E que o Syriza e o referendo de 5 de julho despiriam a verdadeira e horrível natureza de UE, e assim aconteceu.
Isso é agora amplamente reconhecido e sujeito às análises, comentários e opiniões dos grandes diários do mundo ocidental, a imagem da UE é agora clara, precisa e aterrorizante, o que de passagem é bom saber na Nossa América em um momento de persistente retorno das iniciativas de certos países em celebrar acordos de livre comércio com a UE.
Por que era importante despir a UE? Porque a vitória humilhante e tipicamente imperial da UE contra a Grécia, pequeno povo em uma região de muitos povos também esmagados pela austeridade do dogma neoliberal e pela utopia monetária do euro (que tanto se parece ao padrão ouro, de triste memória) demonstra de forma clara e precisa o que já muitos alertavam, que não há nem haverá alternativas econômicas, sociais e políticas favoráveis às maiorias populares dentro da UE em seu formato atual, que foi cuidadosamente criado para ser o que é, e não outra coisa, e que o “sono europeu” se transformou em “o pesadelo europeu”.
As possíveis consequências das derrotas humilhantes
Frente à capitulação de Tsipras, as primeiras reações foram bastante decepcionantes e não faltaram os que o qualificaram de traidor, como se tivesse tido outra alternativa a não ser entrar na arena e tourear. Mas não demoraram a surgir nos movimentos populares, sindicais e partidos políticos de muitos países europeus um forte sentimento de repúdio generalizado às políticas da UE, um chamado à solidariedade com o Syriza e o povo grego, e à resistência e ao combate contra as políticas da UE.
Sobre a visão que o povo grego tem agora da UE, Stathis Kouvelakis, da Plataforma de Esquerda – um dos componentes do Syriza – disse a Jacobin (7), que tinha recebido uma mensagem de um camarada dizendo que “era verdade que o governo do Syriza tinha conseguido fazer que a UE seja muito mais odiada pelo povo grego que tudo o que (outras formações de esquerda) tinham conseguido conquistar em 20 anos de retórica contra a UE”.
Na realidade, o Syriza, como a maioria das esquerdas da UE que nasceram do “eurocomunismo” dos anos 80, jogavam (agora creio que é necessário escrever esse verbo no passado) com uma “possível” mudança de UE “realmente existente” por via de negociações, pressões políticas e eleições nacionais para transformá-la em uma “Europa Social” com economias capitalistas regulamentadas.
Por isso não figurava, no programa do Syriza, uma saída do euro, e também porque o povo grego não favorecia essa opção. As opiniões mudaram? Os próximos dias e semanas nos dirão, ainda que esse passo não seja uma simples declaração que possa ser feita sem antes um grande, extenso e bem planejado preparativo.
Por quê? Pela simples razão de que a UE, por via dos Tratados, da pressão do Bundesbank e do BCE, da Alemanha, para dizer de forma mais curta, e das diretivas dos burocratas para completar o controle total, desenhou a criação do euro a partir da monopolização da emissão da moeda e da política monetária dos países membros, ou seja, demolindo tudo o que poderia tornar possível um “retrocesso” às soberanias nacionais e populares. A imprensa que imprima os Dracmas não existe mais, como disse Varoufakis.
Dito em termos mais militares, a UE, sob a direção da Alemanha de Ângela Merkel, ao esmagar o pequeno e inofensivo povo grego, ganhou uma batalha que semeou dúvidas sobre a direção a “guerra” e os meios utilizados para esmagar a Grécia. Dois aliados importantes de Berlim, Paris e Roma estão endividados e politicamente asfixiados pelas políticas de austeridade, e podem se ver submetidos à “asfixia mental” do Eurogrupo. Ao mesmo tempo, a Alemanha criou mais inimigos potenciais em outros povos europeus que também podem ser vistos dentro de pouco tempo na situação atual da Grécia. Que é isso, senão uma “vitória pírrica”?
Inversamente, a humilhante derrota que nesta batalha o Syriza sofreu pela inevitável tarefa de buscar como diminuir o fardo de medidas de austeridade e começar a renegociar a impagável dívida, é talvez o catalizador do processo de tomada de consciência popular e nacional que faça com que o sofrido povo grego decida resistir enquanto continua lutando por uma volta à verdadeira soberania nacional e popular.
Por último, talvez valha a pena reproduzir aqui alguns parágrafos do que os canadenses da esquerda radical, Leo Panich e Sam Gindin, escrevem da Grécia e para a esquerda internacional, com o título “Tratando o Syriza de forma responsável”: apesar das caracterizações que nos últimos dias alguns da esquerda radical fizeram sobre o Syriza, “os partidários do neoliberalismo deixaram claro que eles acreditam que o Syriza não era um típico partido socialdemocrata no qual pudesse confiar que se acomodaria com o neoliberalismo. Na verdade, eles veem claramente que o Syriza é um partido de esquerda com o socialismo em seus genes, e um que, apesar de todas as limitações de continuar pertencendo à UE, continuará desafiando o capitalismo europeu e global.
“O conteúdo exato do acordado entre o Syriza e a liderança da UE será examinado nos próximos dias e a reação do partido daqueles que o apoiaram no referendo será avaliada. Esperamos que o Syriza possa se manter unido uma vez que é a mais eficiente nova formação política surgida na esquerda europeia nas décadas recentes. O papel responsável da esquerda internacional é apoiar isso, enquanto continua afirmando as debilidades do partido em termos de capacidade para construir redes de solidariedade de forma a criar planos econômicos alternativos regionalmente, para que (os gregos) possam trabalhar em relações sociais transformadas. Isso é o que realmente importa, e que não será menos crucial inclusive com uma saída do euro. O potencial disso será abordado no futuro. Dada nossa própria debilidade nesse sentido e enquanto presenciamos como todo esse drama se desenvolve, pedimos uma considerável paciência e modéstia da esquerda internacional. (8)
(*) Alberto Rabilotta é jornalista argentino-canadense. Artigo originalmente publicado na Agencia Latinoamericana de Información
(**) Tradução: Kelly Cristina
Notas: