As universidades públicas brasileiras, particularmente as federais, têm realizado paralisações e greves de forma mais ou menos periódica desde os anos 1980. Segundo o ANDES, de 1980 a 2016 ocorreram 21 greves no total, sob diferentes contextos econômicos e políticos, com diferentes pautas, e maior ou menor adesão. Ao fim da maioria das greves, as universidades, incluindo aí docentes, técnicos-administrativos e discentes, foram beneficiadas de alguma forma, fosse com correções salariais, fosse com aumento de contratações ou maior repasse de verbas. O exercício histórico do direito à greve, assim, tem (i) contribuído para ganhos líquidos para as universidades ou (ii) para evitar que prejuízos se aprofundassem (perdas salariais absolutas e relativas a outras carreiras; falta de novas contratações; condições ruins de infraestrutura; perda na disputa de recursos junto ao governo, etc.). O direito e o exercício recorrente à greve não implicaram, porém, que a posição relativa das universidades federais em termos da alocação de recursos públicos tenha sido mantida ao longo dos últimos anos.
Como sabemos, as universidades federais foram expandidas ao longo dos governos de Lula e Dilma (2003-2016), em termos de unidades, discentes e docentes. Os investimentos absolutos e relativos do governo federal na educação superior (em relação aos outros ministérios) foram crescendo ao longo dos anos 2000, chegando a um pico em julho de 2012, quando atingiram 20% do total de despesas primárias do governo federal. O acesso de estudantes de baixa renda ampliou-se ao longo desse período, com a institucionalização das cotas para alunos e alunas vindos das escolas públicas, além das cotas étnico-raciais. O perfil socioeconômico dos alunos, e mesmo dos professores (em menor medida), foi democratizado ao longo desses anos. A pós-graduação expandiu-se, com aumento da titulação de mestres e doutores e expansão dos programas de pós-graduação. Tratam-se de vitórias no processo de inclusão social do país, no qual as universidades assumiram papel proeminente. Mas esse quadro está longe de caracterizar de forma definitiva a evolução das condições das universidades federais ao longo dos anos subsequentes.
De fato, de 2000 a 2015, ocorreriam sete greves nas universidades federais. A greve de maior amplitude participativa foi a de 2012, à qual aderiram sessenta universidades; a greve de 2012 foi também uma das mais longas, tendo sido realizada ao longo de 125 dias. Seus resultados para os docentes foram contraditórios, com aumentos salariais distribuídos de forma desigual entre os diferentes níveis da carreira, e criação de um maior número de níveis iniciais, prejudicando os salários e a progressão dos ingressantes. O grau de titular, porém, foi garantido como o último dos níveis ao qual podem chegar os docentes. (Observe-se também que os tetos de aposentadoria também foram implementados ao longo do período, com a criação dos regimes complementares e o fim da aposentadoria integral).
Vejamos inicialmente a questão dos salários reais. A greve de 2015 foi a última que envolveu correção salarial; esta greve duraria 139 dias e teria adesão de 39 universidades federais, levando a um acordo de reajuste de 5.5% para o ano subsequente (2016), e de mais 5.5% para 2017. Foi a última greve de grande extensão realizada até o presente momento, com exceção da greve de 2016, que durou apenas 26 dias. De 2015 a 2023, a inflação medida pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) somou 52.9%. O resultado líquido da inflação para o quadro de docentes e técnicos-administrativos chegou assim a 41.9% de perda de poder de compra de seus vencimentos até meados de 2023. Com o aumento de 9% concedido no primeiro ano do atual governo Lula (2023), a perda líquida aproximada do poder de compra chega ainda a 32% ao longo do período assinalado (2016-2023).
Todavia, uma eventual greve dos docentes em 2024 (os técnicos-administrativos em muitas universidades já estão paralisados) não tem nas perdas salariais líquidas sua única justificativa. Os investimentos do governo federal (isto é, as despesas primárias, tal como são também definidos pelo Tesouro Nacional) na educação superior caíram em termos relativos desde 2012, chegando a apenas 8% do total empenhado em 2023. A queda não foi, porém, apenas relativa; o nível nominal de despesas com a educação superior em 2023 era o mesmo, em termos absolutos, do valor registrado em 2016; de fato, se aplicada a inflação (IPCA) de 42% entre 2016 e 2023 ao valor das despesas de educação deste último ano, o valor real das despesas com educação em 2023 torna-se quase a metade do que era em 2016. Esse é o quadro geral no qual as universidades federais se encontram em 2024.
Consequentemente, acumularam-se uma série de prejuízos. A desvalorização dos salários intensificou as perdas de quadros para o setor privado e desestimulou o aumento da produtividade e da eficiência do fator humano aí atuante – por exemplo, mediante a redução consciente do ritmo de trabalho. Do ponto de vista das universidades como prestadoras de serviços (públicos), a queda das transferências de recursos resultou em menor número de contratações e interrupção da expansão de infraestrutura, gerando: (1) precarização das condições de trabalho (especialmente na forma de salas de aula superlotadas e maior carga de atividades administrativas por funcionário empregado); (2) comprometimento da infraestrutura e paralisação de obras; (3) menor número de bolsas e auxílios; (4) desmoralização de docentes e técnicos-administrativos, com aumento da defasagem salarial não apenas face ao setor privado, mas a outras carreiras do setor público. Em tempo: a taxa quadrienal de expansão da contratação de funcionários públicos (nos três níveis) em 2019 (2019/2015) chegou ao nível mais baixo desde 1985, segundo o IPEA. O número de funcionários públicos como proporção da força de trabalho no país atingiria seu pico em 2015, com aproximadamente 10% do total de ocupados, declinando após este ano. Há assim uma necessidade de manter e mesmo elevar contratações não só na educação, mas na saúde, assistência social, fiscalização ambiental e outras áreas ligadas ao desenvolvimento socioeconômico. A luta pelo financiamento dos recursos à educação faz parte de uma agenda mais ampla, que não pode ser feita mediante aquilo que Gunnar Myrdal uma vez definiu como soft state, isto é, um estado fraco.
Gostaria de fazer uma menção particular à situação da pós-graduação, que ocupa uma parcela importante do tempo de trabalho de boa parte dos pesquisadores das universidades federais (e outras universidades públicas). De fato, rigorosamente nenhum(a) docente recebe vencimentos adicionais para integrar a pós-graduação nas universidades mantidas pelo governo federal. Formalmente, não há adicional de remuneração ligado à quantidade de aulas, orientações de estudantes, reuniões de grupos de pesquisa, bem como publicação de artigos, capítulos e livros. Não há um mecanismo institucional que vincule aumento da produtividade e pagamentos proporcionais. Particularmente, a gestão da pós-graduação tem sido um foco de intenso desgaste dos docentes à testa do processo, com acúmulo de atividades administrativas e burocráticas – em geral, exigidas pela CAPES – que não raramente levam ao adoecimento mental e/ou físico, ou no mínimo à fadiga recorrente (“burnout”). A pesquisa e a atuação nas universidades federais têm tido crescente “custo de oportunidade” quando comparados às atividades remuneradas no setor privado da economia. Ressalte-se também a recorrente prática da contratação de professores visitantes, cujos contratos são de curta duração (em geral, dois anos), intensificando a precarização do quadro docente.
Particularmente, tive a experiência de estar à frente de duas coordenações de programa de pós-graduação ao longo dos últimos anos na universidade em que atuo, a UFABC; foi a experiência de trabalho mais desgastante que já tive. A ausência de uma equipe de técnicos-administrativos disponível para cada um dos programas da universidade implica em trabalho adicional não remunerado por parte de todos os docentes que se envolvem em sua gestão, realizando funções para as quais não foram originalmente contratados em seus concursos públicos. O pagamento das chamadas funções-gratificação exclusivamente aos coordenadores de programa é de valor reconhecidamente baixo diante do desgaste que a função acarreta; no caso da UFABC, em particular, não há recursos para o pagamento de doze parcelas anuais a todos os coordenadores(as), e um rodízio foi implementado(!). Por sua vez, os poucos técnicos-administrativos disponíveis para a administração dos programas vêm também sofrendo pressão pela necessidade de gerirem vários programas ao mesmo tempo.
Não é demagogia afirmar que a criação e a gestão dos programas de pós-graduação têm sido mantidas nas universidades federais com base no idealismo dos docentes que os integram. A crescente digitalização e informatização das atividades criou uma falsa impressão de que o fator humano é descartável; na prática, a gestão diária dos programas, incluindo sua relação com a CAPES, demanda muito trabalho mecânico e repetitivo que as máquinas não podem realizar. No mínimo, cada programa de pós-graduação deveria ter um ou dois técnicos-administrativos exclusivos para a organização e implementação das operações necessárias ao funcionamento do programa (organização da oferta de disciplinas, processo seletivo, relatório do Coleta-CAPES anual, relatório de avaliação quadrienal da CAPES etc.). Como as universidades públicas são as instituições à frente da maioria da pesquisa científica que se faz no país em termos quantitativos, uma parte relevante desta vem sendo produzida a custos muito reduzidos ou mesmo inexistentes para o Estado brasileiro, em termos contábeis. É necessário desconstruir a associação feita pelo senso-comum entre docência e renúncia material pelo suposto “bem da causa”. Deve-se fazer um esforço por aproximar, ainda que de forma gradual, os salários das universidades dos salários pagos nas funções hoje melhor remuneradas pelo Estado. Isso teria um “efeito demonstração” positivo, atraindo ou mantendo força de trabalho qualificada nas universidades ao longo dos anos subsequentes.
Em suma, o quadro acima descrito não deixa dúvidas em torno da legitimidade da luta pela recomposição salarial e do aumento do volume de recursos à educação superior, traduzida eventualmente em torno de uma greve em 2024, que ora se esboça. Diante deste cenário, coloca-se assim o problema do financiamento à reposição salarial demandada e a recomposição de recursos ao setor. Tal remete à evolução do quadro fiscal do governo federal ora em curso, ilustrado no gráfico 2, abaixo, que mostra o perfil das receitas e despesas do governo federal desde 2021.
De fato, as despesas do governo têm corrido à frente da arrecadação desde o fim da pandemia (aproximadamente em fins de 2021). Porém, as diferenças nas taxas de crescimento não têm sido significativas (comparem-se os coeficientes de ambas as equações lineares). Ainda, as despesas em 2024 foram artificialmente infladas pela autorização judicial do pagamento de um alto volume de precatórios pelo governo federal. Como vimos, a taxa de contratação de funcionários públicos está em seu menor nível histórico e as despesas previdenciárias, um dos principais componentes das despesas federais, estão relativamente estabilizadas. A taxa de variação com as despesas previdenciárias tem oscilado em torno de 1.04 ao ano, e a de despesas de pessoal e encargos sociais apenas a 1.01 ao ano, desde 2021.[1]
Nas séries históricas disponibilizadas pelo Tesouro Nacional aqui utilizadas, não há dados para a arrecadação dos meses de março e abril de 2024, mas sabe-se que esta tem tido um bom desempenho; segundo reportagem da Revista Exame de 21 de março de 2024, a arrecadação do governo federal “teve crescimento real de 12.27% em fevereiro na comparação com o mesmo mês do ano anterior [2023], e chegou a R$ 186,522 bilhões, informou a Receita Federal nesta quinta-feira, 21. O resultado é o melhor para o mês de fevereiro na série história da Receita, iniciada em 1995”. A reportagem continua: “a arrecadação acumulada de janeiro a fevereiro de 2024 alcançou 441,86 bilhões, com acréscimo real de 8,98%. Esse é o melhor resultado para o bimestre desde 2000”. Já no Valor Econômico de 5 de abril, podia-se ler: “Março [de 2024] teria sido um mês de receitas elevadas, possivelmente um recorde, mas insuficientes para alcançar os valores projetados pelo governo para atingir a meta de zerar o déficit público ao final deste ano”. Assim, o quadro fiscal é muito diferente do que era durante a pandemia ou durante a crise econômica e política de 2015-2016. A economia tem mantido certo crescimento, com o indicador de atividade econômica do Banco Central estando em seu maior nível desde 2015, ao longo de uma inflação relativamente controlada e recomposição do nível de reservas externas. Recobrou-se certa normalidade institucional, com a posse e continuidade de um governo eleito democraticamente. Essas condições sedimentam o espaço para uma negociação entre as universidades e o governo.
Em tempo: dada a inelasticidade de boa parte das despesas oficiais, é principalmente sobre a redução da taxa do SELIC que deveria recair o maior montante de recursos à educação ao longo do futuro próximo, a ser acomodada de alguma forma dentro dos 70% de variação das despesas sobre o total arrecado, estabelecidos pelo chamado novo marco fiscal. A redução da taxa SELIC reduziria o custo futuro da dívida interna e contribuiria para uma expansão do produto, a ser revertida em maior arrecadação. Simulações mais elaboradas podem ser feitas nesse sentido, demonstrando a viabilidade de espaço fiscal para a reposição salarial e aumento de recursos à educação.
A flexibilização da posição do Ministério da Fazenda em 2024 também facilitaria o atendimento das demandas das universidades. Não há uma necessidade formal ou técnica, nem embasamento teórico, para implementar um “déficit zero”. De fato, ressalte-se que, em condições de inflação estável, sempre que a redução do déficit é feita em termos de redução de investimentos e despesas correntes, há uma redução quase proporcional da demanda, fragilizando a arrecadação na etapa seguinte do movimento econômico. O corretivo das “contas equilibradas” agrada aos detentores da dívida pública e àqueles que não utilizam serviços públicos, e não deve ser tomado como uma verdade absoluta. De fato, uma redução do déficit fiscal no futuro próximo deveria envolver primeiramente um menor pagamento de juros, estabelecido de preferência a valores abaixo de um dígito no futuro próximo (2024/2025). O caminho da redução sustentada da SELIC, em grande parte, deveria ser o caminho natural da política monetária a ser adotada pelo Banco Central na próxima troca de seu presidente. Se deveria também atuar com mais imaginação e coragem: elevar esforços no combate à evasão fiscal, sistêmica no país, tanto de pessoas jurídicas como físicas, bem como o aumento da tributação sobre o capital financeiro – caminho no qual Fernando Haddad está correto, ao propor a taxação dos offshores e fundos exclusivos, mas que pode ser acompanhado de muitas outras ações.
Há espaço para recomposição salarial e de recursos para as universidades federais. O desempenho econômico corrente e políticas mais adequadas por parte do Ministério da Fazenda e do Banco Central podem acomodar as demandas do setor da educação sem descontrole fiscal.
(*) Vitor E. Schincariol é Professor Associado da Universidade Federal do ABC, e credenciado no Bacharelado em Ciências Econômicas desta universidade. Foi Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial entre 2020 e 2022 e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais entre 2017 e 2018. Foi Professor Visitante na School of Oriental and African Studies (Universidade de Londres). É coordenador do Núcleo de Desenvolvimento e Sustentabilidade (NDS) da UFABC.