No escrito anterior, o primeiro da série sobre Guerreiro Ramos, concluímos falando sobre a questão de classe nos fundamentos e horizontes da reflexão do autor sobre a questão racial. Antes de continuar a análise dos textos do livro Negro Sou, organizado por Muryatan Barbosa, vamos voltar ao tema. Continuamos essa análise a partir de um corte temporal que não está presente na obra Negro Sou – o organizador deste livro, em sua dissertação de mestrado, analisou a questão negra na obra do sociólogo baiano e posteriormente a publicou em livro com o título Guerreiro Ramos e o personalismo negro (Paco Editorial, 2015).
Segundo a pesquisa do professor Muryatan, é em 1946, numa entrevista para Abdias do Nascimento, que Guerreiro Ramos trata pela primeira vez sobre a questão do negro no Brasil. Guerreiro Ramos, à época, ainda não era ligado ao TEN (Teatro Experimental do Negro) e trabalhava no DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). A entrevista gira em torno do discurso do senador Hamilton Nogueira, político da UDN (União Democrática Nacional), em 1946, na assembleia nacional constituinte. No discurso, o senador defendia a punição para atos de discriminação racial no Brasil.
Guerreiro declara apoio à iniciativa do senador e afirma que “a restrição feita ao negro por qualquer instituição, seja oficial ou particular, é anti-democrática” (BARBOSA, 2015, p. 48). Em seguida, Barbosa transcreve um longo trecho da entrevista onde Guerreiro busca sintetizar o problema do negro no Brasil. O sociólogo fala de três aspectos da questão: preconceito racial, preconceito de classe e irredutibilidade de mundos mentais distintos (BARBOSA, 2015, p. 48). Começa argumentando que o racismo enquanto “teoria científica” já não tem validade e foi desacreditado pela obra de vários pensadores, mas que “sobrevive ainda como uma ideologia e numerosos brancos interessados em racionalizar uma dominação política e social” (os germes da reflexão sobre a patologia social do “branco” brasileiro). Em seguida, cita o exemplo dos Estados Unidos e afirma que lá esta “ideologia racial” é um “verdadeiro flagelo” e “o negro americano está segregado”.
Passa para o Brasil e diz que o preconceito existe, mas “é mais disfarçado e o negro sofre uma discriminação menos ostensiva”. Na frase seguinte, continua o raciocínio dessa forma:
“Entre nós, o preconceito racial perde em importância para os dois outros aspectos da questão: o preconceito de classe e a incompatibilidade de dois mundos mentais distintos. Dadas as condições de nossa formação histórica, os homens de cor, no Brasil, em sua maioria, compõem as classes de mais baixo nível econômico. O homem de côr no Brasil é uma criatura em ascensão econômica, assim, muitos dos seus fracassos são atribuídos ao preconceito racial quando muitas vezes, devem ser atribuídas ao de classe. Na Bahia corre um dito, de que o branco pobre é negro e o negro rico é branco, o que dá, em forma pitoresca, alguma medida desta luta de classes. Dois aspectos da questão: cultura e economia. Por outro lado, grande número de negros brasileiros ainda não se incorporou à cultura dominante no Brasil que é a europeia de base latina. Existe uma cultura negra no Brasil, com seu sincretismo religioso, seus hábitos alimentares, sua medicina de ‘folk’, sua arte, sua moral etc. O mundo mental destes grupos é incompatível com o das classes dominantes. O negro brasileiro pode ‘branquear-se’, na medida em que se eleva economicamente e adquire os estilos comportamentais dos grupos dominantes. O ‘peneiramento’ social do homem de cor brasileiro é realizado mais em termos de cultura e de ‘status’ econômico que em termos de raça (BARBOSA, 2015, p. 50-51 – destaques nossos).
Na reflexão de Guerreiro, raça e classe estão indissociáveis no Brasil, com a maioria da população negra compondo as classes de “mais baixo nível econômico”; ao mesmo tempo, o preconceito racial é secundário frente às barreiras de classe, e para superar tais obstáculos de classe é necessário assumir o “estilo comportamental” da classe dominante, branqueando-se culturalmente. Para Muryatan Barbosa, neste período de sua produção intelectual, Guerreiro Ramos está influenciado pela produção de Donald Pierson, sociólogo estadunidense e autor do livro Brancos e Pretos na Bahia (1945). Barbosa sintetiza as reflexões contidas no livro de Pierson, afirmando que, para este, a sociedade brasileira (generalizada a partir da análise da Bahia) seria de “classe multi-racial” e que não temos barreiras raciais ou um preconceito racial ativo produzindo segregacionismo, mas sim preconceito de classe. Os casos de preconceito racial nada mais seriam do que ações individuais em dinâmicas concorrenciais, configurando-se como exceção que confirma a regra – preconceito estrutural de classe e não de raça.
Contudo, como pontua Barbosa, Guerreiro Ramos em 1946 não apenas repetia a análise de Donald Pierson. A análise sobre o “branqueamento cultural” do negro e a necessidade de assimilar a cultura e conduta da classe dominante não está em Pierson (BARBOSA, 2015, p. 56) – como vimos no texto anterior, é um tema que o sociólogo mantém em reflexões posteriores. Para concluir esse ponto, vale citar outro trecho do autor, transcrito por Barbosa no seu livro, onde o sociólogo baiano esboça sua perspectiva política de superação do racismo:
“Os meios de luta do negro brasileiro não devem ser demagógicos nem sentimentais, têm que ser adequados ao modo como se coloca o problema no Brasil. Penso que os homens de côr não devem jamais organizar-se para combater o preconceito racial. Neste ponto, sua atitude deve ser quanto possível de indiferença e até humorística, nunca de indignação. Os dois últimos aspectos da questão (cultura e economia) deve ser, a meu ver, objeto de medidas gerais, dentre as quais, a mais importante se afigura ser uma planificação da economia nacional que venha a elevar o nível econômico das classes pobres e oferecer oportunidade aos mais aptos sem distinção de cor” (BARBOSA, 2015, p. 56 – destaques nossos).
Guerreiro Ramos nega a necessidade de organização política para combater o racismo e prega indiferença e humor frente a casos de preconceito racial. É útil pensar quais casos de racismo podem ser recebidos com indiferença ou humor. Certamente não é o caso da violência policial (desde espancamentos até a morte), prisões ilegais, violação sistemática de direitos ou a miséria por ausência de emprego, preterido na dinâmica concorrencial capitalista pelo marcador racial. A recomendação do sociólogo baiano só é utilizável em situações onde a condição humana não está no limite, como certas expressões de preconceito em um emprego público – como no Dasp, onde Guerreiro Ramos trabalhava na época –, ambientes intelectuais, algumas situações de consumo (como um atendimento hostil ou desdenhoso em uma loja, hotel, aeroporto), etc. No plano de fundo da reflexão do autor, temos situações de preconceito racial mais visíveis para a classe média negra.
Aliado a isso, o autor não recomenda medidas específicas para a população negra, mas sim uma solução geral, pautada na planificação econômica, elevação das condições de vida dos pobres e maior geração de oportunidades. Em suma, é uma questão de classe. A rigor, segundo esta abordagem, não existe propriamente dominação racial no Brasil. Mas sim um problema de classe que em sua expressão fenomênica aparece como antagonismo racial, mas não o é, em sua essência.
Agora podemos voltar aos escritos do livro Negro Sou. Lembro, caro leitor e leitora, que os primeiros textos que analisamos vão de 1949 até 1950. Ainda em 1950, Guerreiro Ramos publica A Unesco e as relações e raça, Notícias sobre o I Congresso do Negro Brasileiro, Narcisismo branco do negro brasileiro, Senhores e escravos no Brasil e Os estudos sobre o negro brasileiro. Antes de tecer uma consideração em conjunto sobre esses escritos, vamos comentar cada um deles.
O primeiro texto é uma tese apresentada ao I Congresso do Negro Brasileiro. Sintetiza as missões da Unesco e faz uma série de recomendações para o órgão. Destaca-se a sugestão para que a Unesco examine a experiência do TEN e a realização de um Congresso Internacional de Relações de Raça (RAMOS, 2023, p. 85). Nesse curto texto – de apenas duas páginas – Guerreiro Ramos também defende a atividade principal do TEN, o teatro, como algo sério, digno de importância e não só um meio de “distração de massas”, mas também de “educação moral e cultural” (RAMOS, 2023, p. 86).
O segundo escrito é um elogio do I Congresso do Negro Brasileiro. Um escrito bem formal e sem maiores elaborações teóricas, onde Guerreiro Ramos traça um histórico de conclaves anteriores sobre o tema e destaca a importância deste evento como um marco no trato da questão negra no Brasil. Diz o autor que “O I Congresso do Negro Brasileiro se coloca na linha de todas essas iniciativas, embora as ultrapasse por muitos motivos”. Quais motivos? Para o sociólogo, “ele foi ao mesmo tempo um certame de objetivos científicos, em que se procurou estudar a questão racial à luz da sociologia e da antropologia, e um movimento político, no sentido amplo do termo, em que os negros procuraram e conseguiram lançar as diretrizes fundamentais do movimento nacional de recuperação econômica e social da gente de cor” (RAMOS, 2023, p. 89).
O terceiro escrito volta com uma elaboração teórica. Guerreiro Ramos adianta reflexões a serem apresentadas de forma sistemática na sua teoria da patologia social do “branco” brasileiro. O autor abre sua argumentação afirmando que psiquiatras e antropólogos vêm demonstrando em estudos que pessoas “pigmentadas” em sociedades ocidentais são induzidas a considerar a cor branca como um “símbolo da ‘excelência’”. Cita o estudo de Melville Herskovits sobre a sociedade estadunidense e de Roger Bastide sobre Brasil para ilustrar com exemplos essa tendência a identificar-se com o branco pelas populações negras – nesse caso, EUA e Brasil seriam exemplos de sociedades ocidentais.
Depois de detalhar o estudo de Roger Bastide sobre o tema, Guerreiro destaca que não se trata de um problema individual, a vontade deste ou daquele individuo negro de “branquear-se”. Fala de um “complexo de inferioridade do negro brasileiro”, com um olhar para dinâmica sistemática de produção da subjetividade, e indica a necessidade de pensar a questão por dois prismas: “uma discussão em torno da explicação desse complexo” e “a discussão do seu tratamento e de sua erradição em massa” (RAMOS, 2023, p. 94). No parágrafo seguinte, ainda que carecendo de maiores desenvolvimentos, o autor aponta as determinações deste complexo de inferioridade:
“As estimações, as preferências, as idealizações do negro brasileiro são condicionadas por sua situação econômica, social e política. A cultura ocidental, elaborada por populações brancas, moldou o seu sistema axiológico à sua semelhança. Seus dentes são brancos, seus símbolos de prestígio são brancos. Introduzidos nessa cultura que não elaboram, os negros assimilaram os seus valores, e porque os assimilaram manifestam no seu comportamento, consciente e inconscientemente, a tendência de identificar-se com o branco. Mas essa tendência é uma espécie de vetor, de caráter precário e circunstancial. Não é nada orgânico ou instintivo (…) Os problemas psicológicos do negro brasileiro são, portanto, culturalmente condicionados. A própria organização social do Brasil engendra uma patologia. É essa organização mesma que é neurótica. É essa organização mesma que tem que ser objeto de um tratamento, se se pretende uma reabilitação psicológica das massas de cor. O aspecto prático do problema do negro é este. Seu exame, porém, não cabe aqui e fica adiado para outra oportunidade” (RAMOS, 2023, p. 94-95 – destaques nossos).
Nesse texto, como fica flagrante, tem início uma relativização da ideia de que a população negra precisa se “adestrar no estilo da classe dominante” e se “ocidentalizar”. Guerreiro Ramos apresenta a formação do Ocidente como uma obra não-universalista de brancos. Essa obra não-universalista promove um complexo de inferioridade nos negros, dado que a “cultura ocidental” não foi elaborada pela população negra, e foi formada com uma gramática social de negativação do ser negro. Nesse sentido, a ausência de valores e habilidades importantes para a disputa no mercado capitalista não seriam responsabilidade única ou principalmente do negro, mas sim expressões de uma organização macrossocial que precisa ser “objeto de tratamento”.
Também é importante destacar que nesse escrito, comparado com a entrevista de 1946 que debatemos acima, some a dimensão de classe da questão negra e a ideia de que “planificar a economia” e “elevar o nível econômico das classes pobres” vai solucionar por si só a questão negra. Guerreiro Ramos começa então uma formulação sobre as particularidades da questão racial como parte dos desafios gerais de transformação do país, dando início à elaboração sobre uma tarefa específica, no âmbito do projeto nacional, a ser realizada para superar o racismo.
No texto seguinte, Senhores e escravos no Brasil, encontramos vários elementos novos surgindo na reflexão do autor. Guerreiro começa descrevendo a tendência dos estudos brasileiros sobre a escravidão de explicar esse processo histórico preferencialmente pela chave da “conciliação do que da luta e do conflito permanente”. Esses estudos ajudaram a formar um estereótipo do “bom senhor, tolerante, paternal e do escravo submisso e acomodado” (RAMOS, 2023, p. 96).
Desta constatação, o autor avança em hipóteses para explicar a dominância desse tipo de literatura. Começa se perguntando: será que esse estereótipo não é uma “elaboração ideológica, uma racionalização de escritores brancos ou de qualquer forma ligados à estrutura de dominação do branco?” Em seguida, faz outra pergunta importante: “se os estudos sobre negros fossem realizados preponderadamente por negros, não teriam eles assumido um outro caráter? Essa indagação está desafiando quem quer que seja capaz de aproveitar os atuais recursos da sociologia do conhecimento” (RAMOS, 2023, p. 97).
No decorrer de todo o escrito, Guerreiro cita trabalhos novos, como de Amaury Porto de Oliveira, que buscavam repensar a historiografia sobre a escravidão no Brasil e questionar os mitos e estereótipos consolidados nesse campo de estudos. É fundamental perceber a linha de continuidade e desenvolvimento entre Narcisismo branco do negro brasileiro e Senhores e escravos no Brasil. Guerreiro formula uma crítica a uma concepção não-universalista na criação da “cultura ocidental”, produtora de um complexo de inferioridade do negro. No escrito seguinte, indo para história brasileira, aponta novamente para uma produção teórica feita por brancos ou ligados à estrutura de dominação do branco que produzem estereótipos que também desaguam na inferiorização do negro.
Contudo, no debate sobre escravidão no Brasil, para além de erros teóricos-metodológicos ou pesquisas insuficientes, o sociólogo baiano questiona o lugar político do sujeito da produção de conhecimento, levando a hipótese de que se os estudos sobre o negro tivessem sido realizados por negros, poderiam ter assumido outro caráter. Vai configurando-se, aos poucos, uma teoria da dominação racial pela chave análise da produção da cultura, ciência e subjetividade.
Este desenvolvimento teórico de Guerreiro Ramos ganha novos contornos com o texto Os estudos sobre o negro brasileiro. Nesse escrito, o autor passa em revista os estudos sobre o negro no Brasil e ataca o “academicismo” e o “epicurismo sociológico interessado nos aspectos pitorescos da questão”. Um mero “descrever, estudar por estudar” (RAMOS, 2023, p. 101). O autor aponta não só para um problema de forma nesses estudos, como também problemas graves no próprio conteúdo:
“O negro tem sido estudado, entre nós, como palha ou múmia. A quase totalidade dos estudos sobre o tema implica a ideia de que a abolição tenha sido uma resolução definitiva do problema das massas de cor. Depois daquele cometimento espetacular, nada haverá que fazer senão estudar um negro do ponto de vista estático. E, assim, os especialistas entraram na pista dos trabalhos de reconstituição histórica, do folclore e de certa antropologia descritiva, por excelência” (RAMOS, 2023, p. 101).
Guerreiro Ramos aponta para um debate equivocado, desvinculado da práxis, analisando a questão negra por aspectos “pitorescos” e como elemento estático, tema do passado, como se analisaria povos “primitivos” que não existem mais. Esse padrão de produção teórica, para o sociólogo, cria uma “falsa consciência da questão” e ajuda a tranquilizar “a consciência das elites”. Sem negar elementos de utilidade a esses estudos, indica a origem dos marcos teóricos-políticos errados nos estudos sobre o negro.
Começa dizendo que esse olhar teórico de buscar o pitoresco, estático e meramente descritivo é esperado de “antropólogos, sociólogos, folcloristas de outros países”, afinal, essa “atitude e essa preferência justificam-se como um dos correspondentes do complexo imperialista daqueles países”. Em continuidade, indica que “nossa antropologia, nossa sociologia do negro, quiça de quase todos os outros temas, é que poderíamos ser menos inocentes ou diversionistas, menos artigo de importação” (RAMOS, 2023, p. 102).
Antes de prosseguirmos, é fundamental destacar os elementos da reflexão do autor. A questão negra no Brasil é estudada desde uma perspectiva academicista, descolada da práxis. Esses estudos estão marcados por amplos erros teóricos, metodológicos e políticos e esses equívocos são explicados por uma tendência à importação de ideias produzidas nos países centrais do capitalismo, marcados pelo “complexo imperialista”. Guerreiro caminha para colocar o problema do colonialismo cultural como elemento central do debate sobre a questão racial no Brasil. Colonialismo cultural em dois vetores: os critérios positivos de gramática social – o que é belo, excelente, desejado etc. – produzidos pelo branco na cultura ocidental, e o lugar do negro nessas sociedades, analisando-o a partir dos paradigmas teóricos produzidos nos países imperialistas.
No raciocínio do autor fica implícita a compreensão que o caráter academicista e descolado da práxis desses estudos é um resultado necessário do descolamento da realidade nacional, dado que, ignorando as particularidades da questão negra no Brasil, não é possível uma ação política de resolução. Nesse sentido, o olhar teórico para o negro como ser estático e mumificado é algo socialmente imperioso da legalidade imanente destes estudos. O fio condutor da reflexão pode ser sintetizado em dois vetores: questão nacional e colonialismo cultural.
Contudo, como uma espécie de superação incompleta das suas abordagens anteriores, o autor tem dificuldade de ultrapassar certos erros de análise, mesmo avançando em um novo marco teórico de compreensão das relações de raça no Brasil. Sem uma boa conexão com o parágrafo anterior que citamos acima, diz em seguida que esses estudos errados ajudam a “travar o processo de evolução cultural das massas de cor, porque, de certa maneira, instalaram entre nós um certo saudosismo” (RAMOS, 2023, p. 102).
O sociólogo, incrivelmente, fala de saudosismo em referência às religiões de matriz africana, chamada de “religiosidade mágica”, e diz que as massas de cor deveriam aderir, por exemplo, “ao protestantismo e ao catolicismo, traços mais operativos no incipiente capitalismo brasileiro” (RAMOS, 2023, p. 103). É notável perceber como Ramos não consegue refletir, nesse momento de sua obra, sobre o papel do cristianismo e da Igreja Católica na criação do que chamou de “narcisismo branco do negro brasileiro” e nos padrões axiológicos da nossa gramática social de inferiorização do negro – reflexão que aparecerá em 1955. Aliado a isso, Guerreiro Ramos se mostra bastante resistente a analisar as religiões de matriz africana como elemento de resistência, autoestima e coesão de grupo frente às pressões econômicas, políticas, ideológicas, culturais e subjetivas produzidas pelo racismo.
Depois desse apontamento descolado do conjunto da reflexão sobre a religião, o autor volta-se para a grande tarefa do pós-abolição ainda não realizada, citando Joaquim Nabuco e seu livro O abolicionismo. O trecho citado coloca relevo na ideia de “adaptar à liberdade” a sociedade moldada pela escravidão. Fica implícito que Guerreiro Ramos cita Joaquim Nabuco como alguém que pensou a superação do racismo no Brasil como obra por fazer-se, conectando a análise à uma práxis política.
A partir da reivindicação de uma tradição posta por Joaquim Nabuco, afirma que temos dois temas fundamentais: “o da evolução do nível moral, cultural e econômico das massas de cor através de mecanismos de cooperação específicos para o negro e o da reeducação das camadas brancas e brancoides” (RAMOS, 2023, p. 104). Novamente, Guerreiro Ramos adianta aspectos de sua teoria da patologia social do “branco” brasileiro, quando fala da “reeducação das camadas brancas e brancoides”. A impressão que passa, olhando os textos em conjunto, é que o autor percebia um forte elemento de inovação que introduziria no debate brasileiro sobre a questão racial e vai tateando, apresentando aos poucos a ideia – ou, então, apresentava fragmentos da reflexão de maneira concomitante ao andamento da formulação.
O central é perceber o enriquecimento que a formulação teórica do autor vive a partir do final de 1950 – no livro Negro sou, nas últimas páginas, temos a fonte original de cada texto com data e às vezes mês de publicação. Olhando em conjunto, as inovações e descobertas que o autor fazia no seu debate sobre a sociologia e o Brasil vão paulatinamente aparecendo na reflexão sobre a questão racial. Temas como uma sociologia voltada à práxis, o colonialismo cultural e a importação de ideias, o problema do academicismo, a busca por uma corrente nacional e original de interpretação da realidade brasileira (e construção de uma sociologia fincada nas condições brasileiras), a dimensão colonial da economia brasileira e a construção de um capitalismo nacional vão se entrelaçando e enriquecendo com o debate sobre o racismo no Brasil.
Contudo, depois desses escritos que analisamos acima, o autor passa dois anos sem publicar sobre o tema. Só em 1952 é que volta a lançar um escrito sobre a questão negra, intitulado Um herói da negritude. O texto é uma homenagem a Aguinaldo Camargo, advogado, agrônomo, ator, filósofo e pensador multifacetado. Aguinaldo morreu precocemente, em 1952, fruto de um atropelamento. O texto de Guerreiro é poético, bonito, carregado de emoção. Mas não fica alheio ao escrito de homenagem uma reflexão sociológica. No trecho mais importante para os fins do debate que estamos fazendo, diz Guerreiro Ramos:
“A tese da negritude, afirmada por uma elite de intelectuais de cor, e que se concretiza no Teatro Experimental do Negro, representa uma superação do imperialismo antropológico e sociológico à luz do qual tem sido considerado o chamado problema do negro no Brasil. A concepção ortodoxa que os nossos mais prestigiados antropólogos e sociólogos têm do negro brasileiro é uma transplantação cultural, algo estranho à cultura brasileira. Quero dizer, os nossos antropólogos e sociólogos veem o problema do negro brasileiro como os seus colegas norte-americanos e europeus. Daí terem explorado o aspecto exótico e pitoresco do tema, exatamente como o faria o estudioso estrangeiro recém-chegado ao Brasil” (RAMOS, 2023, p. 108 – destaques nossos).
Como podemos ver, segue forte a ideia de que é no colonialismo cultural que devemos procurar a raiz das interpretações equivocadas sobre o negro brasileiro. E Guerreiro Ramos localiza na prática do TEN o início dessa superação do “imperialismo antropológico e sociológico”. Depois disso, o sociólogo só volta ao tema em 1953, marco inicial do confronto entre Guerreiro e o sociólogo Luiz Aguiar Costa Pinto (autor que será objeto de análise nessa coluna no momento adequado).
Guerreiro Ramos dedica a essa luta os textos A Unesco e o negro carioca, Sociologia clínica de um baiano “claro”, O negro, a Unesco e o carrerismo e Uma redefinição do problema do negro – este último, publicado em dezembro de 1953. Nesses quatro textos, o pensador baiano acusa Costa Pinto de carreirismo, plágio, falta de rigor teórico e qualidades morais, falso pioneirismo e afins. Como não temos acesso aos textos de Costa Pinto no livro Negro Sou, podemos ficar com a impressão de uma agressividade desnecessária ou desmedida de Guerreiro Ramos. Mas é preciso cuidado com essa análise.
Costa Pinto também expressou dura agressividade e ataques contra Guerreiro e chegou a classificá-lo como “mulato pernóstico”. O escrito Sociologia Clínica de um baiano “claro”, por exemplo, é uma resposta direta de Guerreiro ao livro de Costa Pinto, quando o autor, devolvendo o ataque, faz uma análise da personalidade sociologicamente condicionada do seu adversário teórico e político. Muryatan Barbosa, em sua já citada dissertação de mestrado, diz que a análise de Costa Pinto “proporcionou, nesse caso, um exemplo lapidar de sua teoria das relações raciais, mostrando como um hipotético membro da elite branca não podia aceitar, pacificamente, a incorporação de indivíduos negros ou mestiços a sua estirpe” (BARBOSA, 2015, p. 165).
Nesses escritos, embora Guerreiro fale de si, como se Costa Pinto buscasse apagar sua obra, o seu foco é defender o lugar de pioneirismo e inovação do TEN nos estudos e compreensão das relações de raça no Brasil. Esse é o ponto mais interesse dos textos recheados de bons ataques: para o nosso sociólogo, não existe uma separação rígida entre produção teórica e ação prática, com a existência do TEN, a partir de sua atividade, representando em si uma abertura de novos horizontes teóricos e científicos.
Barbosa, citando Marcos Chor Maio, destaca que a polêmica com Costa Pinto foi determinante na produção teórica de Guerreiro Ramos. Essa luta teria confirmado as “convicções críticas” do nosso sociólogo a respeito dos “estudiosos de relações raciais no país”, e ele diz que “é provável que sem Costa Pinto e seu livro O negro no Rio de Janeiro, Guerreiro não houvesse escrito O problema do negro na sociologia brasileira, O negro desde dentro e a Patologia Social do ‘branco’ brasileiro” (BARBOSA, 2015, p. 165-166). No próximo escrito, vamos analisar os escritos citados acima para chegar ao ponto alto da reflexão de Guerreiro Ramos sobre a questão racial.