Há pouco mais de um ano, a Itália viveu uma reviravolta eleitoral sem precedentes na história do país. A extrema-direita ganhou as eleições por ampla maioria e governaria durante os quatro anos seguintes em uma coligação de três partidos, na qual a direita moderada é a fração minoritária. Este fenômeno causou uma enorme comoção para além das fronteiras italianas, visto que muitas pessoas viam com temor a possibilidade de uma antiga admiradora de Mussolini chegar ao poder na terceira maior economia da Europa. Mas na Itália, onde as pesquisas previam há meses que a chegada de Meloni ao Palazzo Chigi era praticamente inevitável, o sentimento foi mais próximo do conformismo do que do medo ou da indignação. A extrema-direita chegou ao poder, sim, mas era uma extrema-direita que já ocupava cargos de responsabilidade institucional há décadas, cuja líder já havia sido ministra em 2008.
Um ano após a sua vitória eleitoral, a avaliação do governo de Meloni é ambígua e, embora ele não empolgue nem mesmo os seus partidários mais leais, parece, por enquanto, conseguir manter um nível de apoio mais elevado do o que conquistou nas eleições, em setembro de 2022. Em relação ao seu próprio cronograma, o governo cumpriu muito menos do que o previsto, mas a sensação é de que esses fracassos não afetaram a primeira-ministra.
Meloni deu absoluta continuidade aos “grandes temas” que o governo de Mario Draghi lhe deixou como herança: a política econômica, energética e externa. Foi a Bruxelas pouco tempo depois do início do seu mandato para aprovar orçamentos sem as enormes reduções de impostos defendidas pela direita italiana durante a campanha. Visitou vários países africanos para tentar chegar a acordos no campo energético que permitissem ao seu país ser menos dependente da Rússia. E tem enfatizado constantemente o seu apoio incondicional à Ucrânia, afastando quaisquer dúvidas em relação à russofilia de seu governo, suspeita que antes era levantada devido às amizades estranhas de Salvini e Berlusconi.
No entanto, embora o governo não tenha sido tão fiel à sua agenda como os seus apoiadores fiéis gostariam, Meloni conseguiu deixar a sua marca em algumas das políticas do seu governo. As medidas que dificultam a adoção de crianças por casais LGBTI, o controverso Decreto de Segurança aprovado em resposta à realização de festas rave e a abolição do programa Renda Cidadã (um valor mensal pago para os cidadãos com menos recursos) são até agora as principais bandeiras da administração de Meloni para o seu eleitorado mais à direita.
São medidas que, de certa forma, são vistas como moderadas pelos seus apoiadores, sobretudo se levarmos em conta que a política imigratória do governo esteja sendo um absoluto fracasso. A extrema-direita, que durante a campanha prometia acabar com a chegada de migrantes ilegais, percebeu como as suas políticas de linha dura, baseadas no fechamento de portos e em dificultar o trabalho das ONGs de resgate a imigrantes, foram completamente ineficazes. Somente neste ano, a Itália recebeu mais imigrantes do que nos últimos anos e, segundo uma pesquisa publicada pelo jornal Stampa, 60% dos italianos rejeitam a política migratória do governo. Uma questão delicada que coloca a extrema-direita de frente para o espelho, diante de uma realidade muito mais complexa que as suas proclamações xenófobas e sensacionalistas.
Apesar de todas estas dificuldades, um ano após a sua vitória eleitoral, o governo Meloni vive uma situação bastante estável, especialmente se tratando da Itália. No entanto, ocorreram várias mudanças no país que podem influenciar o futuro do seu governo.
Schlein, Berlusconi e… Salvini
A primeira dessas mudanças foi o estabelecimento de uma nova liderança na oposição. Elly Schlein, antiga eurodeputada e vice-presidente da região de Emilia Romagna, ao norte da Itália, venceu as primárias do Partido Democrático em março, dando início a uma nova era da centro-esquerda italiana. A eleição de Schlein marcou uma mudança brusca de direção num partido excessivamente moderado e burocratizado ao qual uma liderança jovem, mais ligada ao ambientalismo ou ao feminismo, poderia dar uma nova vida. Além disso, o estilo e o caráter da nova líder do PD a fazem parecer politicamente muito mais capaz do que a sua antecessora para enfrentar um fenômeno político como Giorgia Meloni, o que também foi um estímulo moral para um partido que urgia por mudanças.
Infelizmente para a centro-esquerda, as expectativas criadas em torno da eleição de Schlein foram muito maiores do que sua liderança. Os problemas criados no seu próprio partido, somados ao fato de só poder enfrentar Meloni no Parlamento, onde a líder romana se defende muito bem, fizeram com que, por enquanto, a mudança de liderança no Partido Democrático não tenha sido capaz de desgastar o governo de Meloni. É claro que as coisas podem mudar a qualquer momento, mas, por enquanto, Schlein não representa qualquer ameaça à sobrevivência política de Giorgia Meloni.
Presidência da Ucrânia
Giorgia Meloni, a primeira-ministra da Itália eleita em 2022
A segunda grande mudança que agitou o tabuleiro de xadrez político italiano foi a morte de Silvio Berlusconi, deixando um vácuo político que os seus antigos parceiros de governo tentam preencher. O que acontecerá ao futuro do partido Forza Italia é um dos grandes elefantes na sala do Conselho de Ministros no Palazzo Chigi, bem como a principal causa da guerra nos bastidores travada entre Salvini e Meloni. Nos últimos meses, as tensões entre os parceiros da coligação aumentaram e Salvini, vice-presidente e ministro de Infraestrutura, tem tecido algumas críticas a Meloni pela sua falta de firmeza na abordagem de algumas questões.
Estas tensões explicam-se pelo cenário atual da direita italiana, que poderá passar de três para duas forças, caso o Forza Italia acabe desaparecendo. Meloni e o seu partido se preparam para este cenário há algum tempo e tentarão por todos os meios absorver o Forza Italia, com quem já partilharam espaços no passado, quando o partido de Berlusconi e a extrema-direita do Alleanza Nazionale convergiram numa formação chamada Popolo della Libertà, que ganhou as eleições de 2008. Para isso, a primeira-ministra cultiva, há algum tempo, uma imagem menos ultradireitista e mais presidencial, numa tentativa de seduzir os setores mais moderados que costumavam votar no Forza Italia.
Mas Meloni não é a única que está se preparando para essa situação, já que Matteo Salvini também vem se movimentando politicamente há algum tempo nesse sentido. O líder da Lega tem clareza quanto ao futuro do seu partido e, há meses, tem tentado afirmar-se como o guardião da essência da coligação: ser a voz dos apoiadores mais extremistas e garantir que o governo não sedesvie de seus objetivos. Se há alguma polêmica, Salvini toma uma posição mais veemente do que Meloni. Se é necessário gritar mais alto, é ele quem levanta a voz mais do que qualquer outro. E se há uma oportunidade de mostrar que é indispensável para manter o governo nos trilhos, ele faz questão de demonstrá-lo.
O último episódio da crise migratória em Lampedusa evidenciou estas diferenças entre os dois líderes. Enquanto Meloni se juntou a Von der Leyen em Lampedusa para fazer uma declaração conjunta, pedindo uma solução para o problema em escala comunitária, Salvini foi muito mais contundente, classificando a chegada dos imigrantes como um “ato de guerra”.
A tensão está no ar e este é talvez um dos fatos mais marcantes do primeiro ano de mandato de Meloni. A sua situação política é estável, com uma sólida maioria no parlamento e uma aprovação popular em torno dos 30%. Se não tropeçar em muitas poças de água na Europa, o seu governo poderá muito bem concluir o mandato, algo quase inédito no país transalpino. Atualmente, nem o Partido Democrático de Schlein, nem o Movimento 5 Stelle de Conte, nem qualquer outro ator político ou social é suficientemente forte na Itália para derrubar o governo Meloni. Há apenas uma pessoa que poderá ser capaz disso: Matteo Salvini.
Mas no momento o líder da Lega não parece ter incentivos suficientes para ameaçar derrubar o governo. Tem, sim, vontade de manter a tensão no ar e de conquistar o seu próprio espaço, assegurando para si o eleitorado mais radical da coligação, mas nunca de pôr em risco a sobrevivência do governo. No entanto, será necessário estar atento aos seus movimentos.
Neste primeiro ano após a sua vitória eleitoral, Giorgia Meloni já parece ter a fórmula para a sua sobrevivência política: manter-se na linha na Europa e implementar pouco a pouco uma agenda ultra-conservadora e punitivista em questões como direitos civis, segurança e ordem pública. Ainda assim, a líder do Fratelli d’Italia não deve baixar sua guarda, pois o risco de ser aniquilada mora em suas próprias trincheiras. O navio sob o comando da primeira-ministra continua a flutuar e parece que, se naufragar, será por um motim da sua própria tripulação, e não porque os seus adversários são capazes de afundá-lo.