O artigo a seguir compõe o livro “A Constituinte: avanços, impasses e crises institucionais“, de José Genoino e Andrea Caldas, recém-publicado pela editora Kotter.
Como evidenciado até aqui, a Carta Constitucional de 1988 foi sendo paulatinamente violada por interesses da classe dominante e por interesses autoritários, cujo ápice foi o golpe de 2016 e suas decorrências.
Neste sentido, entendemos ser necessário relocalizar esta rica experiência, que foi o processo da Assembleia Constituinte e seu contexto, no movimento histórico.
Isto significa voltar a discutir, no processo de luta política, uma nova estruturação das instituições do Estado e um novo programa.
Partilhamos a compreensão de que não é possível fazer a roda da história voltar, numa espécie de idílio de repactuação, na reedição de uma Constituição sem máculas.
Até porque, nem na sua origem este pacto constitucional foi desprovido de conflitos e contradições.
Como ressalta Alysson Mascaro (2018, p.80-81): “A nuance de 1988 é que, sendo uma tênue fresta entre as nuvens autoritárias do modelo de capitalismo dependente brasileiro, ela agora se fecha. (…). A luta contra o golpe de 2016 não pode ser o pleito pela restauração fantasiosa ou sebastianista de 1988, mas a efetiva superação de uma sociabilidade capitalista, consorciada entre setores burgueses nacionais e internacionais, que tem o autoritarismo como marca patente na administração política, jurídica e institucional de suas próprias contradições insolúveis, porque estruturais. O termo grande é capitalismo (…).”
Ademais, as próprias condições que permitiram, por determinado tempo, essa “tênue fresta” de relativos avanços democratizantes e civilizatórios já não existem. A acentuada crise de acumulação do Capital reduz as possibilidades de concessões sem conflito, sobretudo, na periferia capitalista.
“Afinal, se a desdemocratização é fruto das insuficiências da democracia liberal, a verdadeira superação da crise exige não o retorno ao velho jogo fechado das elites, mas a edificação de uma ordem política que seja capaz de garantir uma aproximação mais robusta ao ideal de soberania popular, isto é, que encontre caminhos para o embate contra as diversas opressões sociais.” (Miguel, 2022, p.20)
Invariavelmente, mesmo no campo progressista, vozes contrárias aduzem a dificuldade de correlação de forças, o fortalecimento do campo da direita e o risco de que uma nova Constituinte pudesse representar retrocessos, ao invés dos desejados avanços.
Tais receios não são desprovidos de razões e materialidade. Por outro lado, a paralisia diante da cena política não revela solução para uma crise, que independentemente da nossa percepção ou avaliação, de fato existe e se aprofunda.
A encruzilhada não é uma invenção ensaística de nossas cabeças, mas, produto da luta de classes e do motor da história.
A questão que se coloca para o campo da esquerda diz respeito às respostas que daremos a este momento histórico. E para tanto, a orientação da estratégia política precisa indagar se é possível, no atual momento do ultraliberalismo, conquistar (ou reconquistar) direitos sem confrontação.
“As lições históricas são inúmeras e inequívocas: quando as forças progressistas passam pelo poder sem mudar a estrutura do Estado, elas ficam permanentemente expostas aos riscos de serem capturadas por ondas autoritárias, conservadoras e neoliberais. O enfrentamento contra tais destituições sistemáticas deve se dar pela reconstrução de ideias e forças que formem o corpo de um novo poder constituinte. Para isso, é preciso alterar a correlação de forças na sociedade e, então, convocar uma Assembleia Nacional Constituinte.” (Nozaki e Cardoso Júnior, 2018, p.19)
Não se advoga, aqui, um voluntarismo ingênuo e sim, a construção de um processo deliberado, consciente e programático de disputa de hegemonia, no interior dos conflitos e contradições que o tempo presente nos traz.
Nas palavras de Gramsci (1991 b, p.54): “O elemento decisivo de cada situação é a força permanente organizada e antecipadamente predisposta, que se pode fazer avançar quando se manifestar uma situação favorável (e só é favorável na medida em que esta força exista e esteja carregada de ardor combativo). Por isso, a tarefa essencial consiste em cuidar sistemática da pacientemente da formação, do desenvolvimento, da unidade compacta e consciente de si mesma, desta força.”
Este programa precisa contemplar tanto as demandas do alargamento dos direitos universais, como uma nova forma de estruturação política do Estado e suas instituições.
O atual arranjo institucional do Estado brasileiro tem se mostrado impermeável a qualquer alteração que coloque em risco a acomodação do sistema vigente, conforme se depreende da análise de Schier (2016, p.255-256):
“O presidencialismo de coalizão(…) combina presidencialismo, multipartidarismo, sistema proporcional com lista aberta para eleições no parlamento e federalismo. É uma combinação encontrada em poucas democracias e que, de partida, é problemática. Por um lado, a combinação de multipartidarismo e sistema proporcional de eleição gera composições parlamentares fragmentadas. Em democracias consolidadas que adotam esta combinação os partidos políticos, em geral, não conseguem obter mais do que 20% das vagas do Poder Legislativo. Por outro lado, o presidencialismo demanda que o chefe do Poder Executivo tenha apoio do parlamento para implantar a sua agenda e suas políticas mas, em face de um legislativo fragmentado, as relações tendem a ser conflituosas. A combinação desses elementos determina desde o início a emergência de uma relação potencialmente tensional entre os poderes. (…) Logo, o sistema é potencialmente conflitual e a governabilidade difícil. A combinação institucional pode gerar, ao menos tendencialmente, instabilidade política. E bem por esta razão este arranjo institucional proporciona, incentiva e induz a formação de coalizões. Na lógica das coalizões o presidente da república consegue obter maioria no parlamento e, assim, estabilidade e governabilidade. (…)O modelo não se desenvolveu de modo acidental. E não existe margem de escolha. Não há possibilidade de um governo, no Brasil, ser eleito e negar-se a fazer coalizões. E também não há possibilidade de um governo genuinamente de esquerda ou genuinamente de direita. A lógica das coalizões é uma imposição constitucional.”
CEDI/Câmara dos Deputados
Culto ecumênico de promulgação da Constituição com a presença do presidente da ANC, o deputado Ulysses Guimarães – 05/10/1988
Destarte, resulta ingênua a ideia de que é possível alterar o sistema “por dentro”, desconsiderando que o mesmo possui salvaguardas que não serão abolidas, com suavidade.
Tal caminho da progressividade e do gradualismo, que vem sendo defendido e aplicado por setores consideráveis do campo progressista, muitas vezes se escudou em uma determinada interpretação da obra gramsciana, segundo a qual a “guerra de movimento” ou confrontação estaria superada nas sociedades mais contemporâneas.
Em nossa compreensão, a própria obra de Gramsci já advertia para o caráter de dinamismo das estratégias políticas e as especificidades regionais, sem esquecer a própria temporalidade histórica, como se destaca a seguir:
“Verifica-se na arte política aquilo que ocorre na arte militar: a guerra de movimento transforma-se cada vez mais em guerra de posição, podendo-se dizer que um Estado vence uma guerra quando a prepara minuciosa e tecnicamente no tempo de paz. Na estrutura de massa das democracias modernas, tanto as organizações estatais como o complexo de associações na vida civil constituem para a arte política o mesmo que as “trincheiras” e as fortificações permanentes da frente na guerra de posição: elas fazem com que seja apenas “parcial” o elemento do movimento que antes constituía “toda” a guerra etc.(…)A questão relaciona-se com o Estado moderno, não com os países atrasados e as colônias, onde ainda vigoram formas que nos outros já foram superadas e se tornaram anacrônicas.” (Gramsci, 1991 b, p.92) [grifos nossos]
Defendemos, portanto, a combinação de lutas, tanto nas mobilizações sociais, quanto no plano da institucionalidade que busquem tensionar e dinamizar a correlação de forças, em torno do poder político dirigido para a transformação social.
A crise global do capitalismo tensiona os limites da democracia e coloca como imperativo concreto e histórico a rearticulação das forças de esquerda, sob pena do risco da fascistização, das intermináveis guerras e da própria sobrevivência do planeta.
Fundamental nesta disputa de corações e mentes é a construção de um programa global que combine as reivindicações dos vários movimentos e da cidadania insurgente, dos tempos contemporâneos.
As estruturas dos três Poderes precisam ser democratizadas e publicizadas e a participação popular precisa ser constitucionalizada.
É preciso hastear a bandeira das reformas estruturais que enfrentem o racismo estrutural, que aprofundem os direitos das mulheres e da comunidade LGBTQI, que construam perspectivas para a juventude e para a população idosa, que assegurem o modo de vida dos povos originários, que deem respostas para a crise ecológica e façam germinar novas formas de produção mais solidárias e menos excludentes, em uma perspectiva anticapitalista e socialista.
Para tanto, um novo pacto precisa ser firmado. Não o da tradição das transições pelo alto que nos trouxe ao patamar de sucessivas crises, até aqui. Mas, a pactuação altiva das forças de esquerda e centro-esquerda comprometidas com um projeto global de mudanças e de radicalização democrática, popular e soberana.
O “pelo menos 1988” não pode ser o nosso horizonte máximo. Não podemos nos contentar em ser uma ala progressista do neoliberalismo.
Neste sentido, a Assembleia Nacional Constituinte é um horizonte possível, na ligação entre a tática e a estratégica; é a possibilidade de materialização de um programa de mudanças estruturais.
Mas, o mais importante, neste momento, a nosso ver, não é marcar uma data mas, iniciar a construção de um processo e especialmente, de um programa que dê conteúdo e forma às questões inconclusas da nossa história e também às novas demandas da atualidade. Um processo e um programa, que ao fim e ao cabo, corporifiquem o poder de constituir uma nova ordem.
Enfim, uma ordem radicalmente democrática baseada nos princípios da soberania nacional, da igualdade, dos direitos universais e da autonomia popular, que seja capaz de fortalecer um país sem racismo, sem machismo, sem preconceitos e intolerância, ambientalmente sustentável, que respeite os povos originários, a nossa riqueza e diversidade cultural.