Num país em guerra, algo assemelhado a um Poder Ruivo tenta emergir, e é furiosamente reprimido pela ordem constituída. “Nosso dia chegará”, proclamam, desenhados num muro, ruivos armados até os dentes. Nas ruas e residências, a polícia política recolhe violentamente homens jovens, bonitos e donos de cabelos vermelhos cortados em estilo beatle ou rolling stone. No deserto, a juventude ruiva é explodida por bombas em campo minado e/ou executada, a começar por um garoto de seus dez anos, assassinado diante da câmera, com um tiro na têmpora. O enredo se desenrola por sobre uma trilha sonora agressiva, que mistura punk rock e heavy metal.
Parece filme de guerra, mas é o novo videoclipe de uma cantora pop, M.I.A., britânica de origem cingalesa célebre por recombinar sons de rap, reggae, funk carioca, rock e electro. Ela, por sinal, jamais aparece no vídeo em pessoa, talvez pelo propósito de se apresentar como se fosse todos aqueles ruivos reunidos numa artista só.Assista o clipe abaixo.
Dirigido por Romain Gavras, filho do engajado cineasta grego Constantinos Costa-Gavras, Born Free foi construído como uma fábula diabólica, nítida e nada sutil sobre os horrores do nazismo (ou de qualquer espécie de ódio racial institucionalizado). Como é de praxe nos dias atuais, o clipe instantaneamente se espalhou mundo afora, via YouTube. E causou controvérsia, e foi interditado para menores de 18 anos, e rendeu o barulho propagandístico desejado.
Born Free alinha-se a um novo paradigma de lançamento de sucessos musicais, pós-ruína da indústria fonográfica como a conhecíamos, bem à moda do que vem fazendo com êxito estrondoso a nova-iorquina Lady Gaga. O novo pop vale pelos sons, mas vale mais ainda pelas imagens que lhe vêm acopladas. Cada imagem vale por mil sons. Via YouTube, o desvalorizado formato de videoclipe é alçado de volta à condição de superstar, e agora persegue padrões propriamente cinematográficos. À semelhança dos vídeos de Lady Gaga, o de M.I.A. tem créditos de abertura, enredo, tensão dramática e cerca de nove minutos de duração; a música é eventualmente interrompida em favor dos acontecimentos visuais. Como em Lady Gaga, o cineasta norte-americano Quentin Tarantino é referência onipresente.
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M.I.A., a propósito, anda aborrecida, emitindo críticas ácidas contra Gaga e tratando a rival mais moça como “mais parecida comigo que eu própria”. Os “imitadores”, por sinal, são citados explicitamente na letra zangada. Há algo curioso nessa raiva que M.I.A. não tenta dissimular, pois ela, como o liquidificador ultrapop chamado Lady Gaga, também gosta de se nutrir de outras referências sem necessariamente mencionar suas fontes, como bem sabem artistas brasileiros como a funkeira carioca Deize Tigrona (sampleada em Bucky Done Gone, seu primeiro sucesso, de 2005), o duo experimental radicado em Londres Tetine e o coletivo que circunda a dupla de estilistas Dudu Bertholini e Rita Comparato.
A raiva respinga de Born Free, e vai muito além da rivalidade frugal entre estrelas pop desejosas de dominar o mundo. A letra da música fala em “utopia”, e M.I.A. deve conhecer na própria pele almiscarada uma fração da intolerância e do ódio suportados pelos cabelos-de-fogo do filme. Consta que, numa volta ao Sri Lanka, ela testemunhou a guerra civil e a perda de familiares e amigos. O clipe aborda, portanto, temas que devem afetá-la de modo profundo.
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Ainda que assim seja, a utopia professada por M.I.A. é cravejada de paradoxos. Filmada de modo tradicional, tipicamente norte-americano, comunica-se frontalmente com os métodos do mundo “civilizado”, que elabora discursos pacifistas resguardado por um arsenal de metralhadoras, granadas e tanques de guerra.
Não raro, o exemplar Tarantino desanda a filmar latino-americanos e orientais sendo trucidados por “heróis” arianos, como se tudo fosse divertida e satírica brincadeira – não é. É comércio de ultraviolência e ideologia bélica em embalagem pop, algo que M.I.A. produz com sinal invertido ao do reacionarismo de Tarantino, ao apontar a roleta russa para ruivos de pele branquíssima. Faz diferença, mas não chega a desafiar o estado de coisas que o planeta conhece tão bem (ou tão mal). Born Free resulta literal, agressivo e belicoso num grau tal que fica difícil acreditar nele como a denúncia radical e restauradora que, parece, gostaria de ser.
Bem menos distante que a utopia, o projeto de tolerância e liberdade seria mais palpável se estilizasse menos desespero bélico e derramasse uns tantos litros a menos de sangue, fosse real ou cenográfico. Born Free ilustra o mundo como ele é, não como M.I.A., Romain Gavras, você e eu juramos sonhar.
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