Em meu último artigo, mencionei ligeiramente a movimentação da França no sentido de direcionar arsenais e recursos destinados à Ucrânia. A retórica é voltada à Rússia, a quem Macron acusa de empreender um projeto expansionista que ameaça a integridade da Europa.
Para além dos riscos associados a uma escalada da guerra no continente Europeu, envolvendo declaradamente a OTAN numa movimentação que traz de volta ao debate público o pavor da guerra nuclear, parece pouco sustentável a posição do governo francês, dadas suas dificuldades internas para mobilização de pessoal e mesmo de sua capacidade de produção de armamentos e outros equipamentos bélicos.
De fato, nas últimas décadas, a capacidade produtiva francesa no setor de armamentos decaiu enormemente, a despeito de seu domínio da tecnologia nuclear, de armamentos e aeronaves de combate. Situação que se repete em outros países do continente, a ponto de atualmente os mandatários da região admitirem a ideia de comprar, de forma emergencial, equipamentos produzidos fora da Europa a fim de abastecer a Ucrânia.
Sem capacidade de mobilizar um amplo esforço de guerra, ao menos no curto e médio prazo, sem estratégia de organização do povo para o enfrentamento de uma situação de conflagração continental, a impressão que o governo francês transmite ao mundo é de que se trata de um blefe. No entanto, o centro da questão parece estar um pouco além do velho continente. A jornalista Raquel Ribeiro chama atenção para um fator ausente em grande parte das análises referentes aos “golpes de Estado” que se sucederam na região do Sahel, no continente africano. Conforme ela, citando estudo de Thomas Fazi, quase ninguém menciona o papel do domínio financeiro francês sobre os países africanos, especialmente (mas não exclusivamente) países que outrora foram suas colônias e cujo processo de “descolonização” não incluiu a plena autonomia em matéria monetária e financeira. Conforme lemos em seu artigo, cerca de 15 países utilizam, até os dias de hoje, o Franco CFA, moeda emitida pela França (que não a utiliza em seu próprio território, integrante da Zona do Euro). Estão entre essas nações o Mali, Burkina Faso e Níger, não por coincidência ex-colônias francesas que passaram nos últimos anos por golpes de estado que levaram ao poder juntas militares que, precisamente, adotaram medidas imediatas para reduzir a presença da França em seus territórios.
O controle da moeda é um dos principais mecanismos de manutenção do poder colonial francês na região na era “pós-colonial”. Para além disso, os negócios vinculados à mineração (ouro e urânio, principalmente), à extração de petróleo e gás (negócios geridos pela francesa Total), além de multinacionais do varejo, como o Carrefour. Nunca é demais recordar que os bombardeios realizados pela França no Mali em 2013 estiveram diretamente atrelados à defesa dos negócios da Total naquele país.
Com os movimentos políticos de cunho nacionalista em curso, a França vê seus interesses ameaçados no continente-mãe. Paralelamente, a influência comercial da Rússia e da China amplia-se rapidamente, com larga vantagem para a China, com seus investimentos em infraestrutura. No caso da Rússia, nosso tema de hoje, cresce a influência de suas empresas na área energética, ao mesmo tempo em que as tropas mercenárias do Grupo Wagner atuam sob as ordens de governos africanos, realizando combates com grupos terroristas e, também, imiscuindo-se em temas menos afeitos à área militar, como a exploração de ouro.
Diante do crescimento destes competidores externos e da evidente hostilidade dos povos da região do Sahel à França – em razão da secular exploração empreendida por esse país na região – torna-se mais evidente a real motivação do presidente francês em desgastar a Rússia com a intensificação dos conflitos em solo Europeu. A aposta é alta – e envolve riscos reais de uma escalada nuclear. Mas o governo Macron parece disposto a dobrá-la.
(*) Rita Coitinho é socióloga e doutora em Geografia, autora do livro “Entre Duas Américas – EUA ou América Latina?”, especialista em assuntos da integração latino-americana.