Dos anos 1990 em diante, uma nova indústria literária focada nas catástrofes humanitárias emergiu com força no contexto das ‘novas guerras’ do Pós-Guerra Fria.[1] O novo gênero literário mesclou discussões políticas em tom jornalístico, apelos ético-morais em forma de tragédia romanceada, além de boas doses de saber acadêmico em Relações Internacionais.
Ninguém demonstrou o mesmo talento nem obteve o grau de sucesso nesta empreitada do que uma jovem historiadora irlandesa-americana chamada Samantha Power. Inicialmente uma correspondente freelancer nas guerras de fragmentação da antiga Iugoslávia, ela rapidamente ganhou projeção internacional e suas obras tornaram-se influentes best-sellers não apenas em quantidade de exemplares vendidos (até em livrarias de aeroporto) mas, principalmente, em termos do impacto no debate público do Norte Global, por vezes também alcançando adeptos em latitudes mais ao Sul. Ganhadora de diversos prêmios, sua carreira decolaria rumo a patamares que provavelmente nem ela mesma poderia imaginar.
Tamanho sucesso deveu-se, originalmente, a títulos impactantes como Espectadores do Genocídio, sobre a inação do governo Clinton acerca do genocídio em Ruanda, em 1994, ou Um Problema dos Infernos: a América e a Era do Genocídio, vencedor do prestigioso Prêmio Pulitzer, em 2003, na categoria de não-ficção.[2] Seu fascínio pelo tema do genocídio era evidente, bem como sua inequívoca condenação deste tipo de prática, por quem quer que fosse. O argumento era sempre o mesmo: a comunidade internacional teria a obrigação de intervir em qualquer Estado formalmente soberano, a despeito de considerações jurídicas ou políticas, para salvar vidas em casos extremos, i.e., em casos de genocídios, limpezas étnicas e crimes contra a humanidade.
Esta postura rendeu-lhe fama entre as escolas liberais de Relações Internacionais, sempre descontentes com as normas ‘vestefalianas’ de soberania e não-intervenção em assuntos internos de outros países.[3] Junto de outros influentes liberais, Samantha Power fez parte do movimento ideológico em torno da noção de Responsabilidade de Proteger (R2P), que tornou-se um mantra mobilizado por figuras do Ocidente com o propósito de justificar intervenções em nome da ‘segurança humana’ em países do Terceiro Mundo. Não à toa, ela aceitou de bom grado o rótulo de humanitarian hawk (falcão humanitário), que no jargão de política externa estadunidense significa alguém que defende ações de guerra sob o pretexto da defesa dos direitos humanos.
Além de posições na prestigiosa Universidade de Harvard, sua crítica mordaz aos funcionários do Departamento de Estado[2] catapultou sua carreira até ocupar altos cargos justamente na diplomacia norte-americana, culminando com a nomeação para Embaixadora dos Estados Unidos na ONU, em 2013, durante o governo de Barack Obama. Curiosamente, ela se tornou colega dos mesmos membros do Partido Democrata que outrora criticara nominalmente – um por um – em seu famoso libelo contra o desleixo em relação ao genocídio de Tutsis pelas milícias Hutus em Ruanda. Sua tese central era que tais funcionários seriam responsáveis pela tragédia, mais que anunciada, principalmente por se negarem a classificar as atrocidades como genocídio; ou “Palavra G” – justamente porque não podia ser pronunciada por membros do governo. Caso falassem em genocídio, a pressão política tornar-se-ia forte demais e o governo Clinton seria obrigado a intervir, algo que o presidente não queria arriscar, sob risco de prejudicar sua reeleição, após o fiasco na Somália, pouco antes. De acordo com Samantha Power, todos preferiram ser “espectadores do genocídio” por razões políticas mesquinhas.
Gustavo Gonzalez / U.S. Air Force
Samantha Power, então embaixadora dos EUA na ONU, é recebida pelo Major General Gary Volesky na Libéria, em outubro de 2014
Hoje, ela segue nos altos escalões do Partido Democrata, mesmo após ter classificado Hillary Clinton como “um monstro” em uma entrevista (achando que o microfone estava desligado). Joe Biden convidou-a para assumir a Agência de Desenvolvimento Internacional (USAID), famosa por participar na desestabilização de regimes insubmissos a Washington. Um lugar adequado, portanto, para Samantha Power, que está novamente livre para seguir com sua cruzada intervencionista ao estilo white-savior complex: a velha mania ocidental de salvar o Terceiro Mundo de si próprio.
No entanto, o desejo de frear genocídios e crimes contra a humanidade parece ter ficado para trás – ou restrita aos adversários dos EUA no Sul Global. Assim como seus colegas democratas, ela nega-se a classificar o assassinato em massa de civis e a destruição completa de Gaza pelos bombardeios israelenses como Genocídio. A “palavra G” parece novamente estar proibida, desta vez pela mesma pessoa que acusara de desumanos a todos os que dela se esquivaram em 1994. Contudo, para não perder a pose, ela segue gabando-se em sua conta oficial na plataforma X (antigo Twitter) pelo envio de meia dúzia de caminhões com uma suposta ajuda humanitária aos palestinos massacrados, e encurralados, no seu próprio território.
Seja piada de mal gosto ou puro cinismo, Samantha Power agora parece inaugurar um novo gênero literário e político, combinando desfaçatez imperialista e desprezo por vidas humanas (ou mortes humanas, melhor dizendo) mediante uma retórica humanitária-progressista. Um ensaio deste estilo já havia sido feito durante seu mandato na ONU, quando insistiu para que Obama apoiasse a intervenção na Líbia, agora transformada em um lugar onde existem mercados de seres humanos escravizados a céu aberto desde que EUA, França e Grã-Bretanha decidiram bombardear o país em nome do salvamento da população oprimida por Muammar Kadhafi na cidade de Benghazi.[5] Os atuais bombardeios pelas forças militares israelenses, no entanto, não geraram a mesma reação: ninguém no Ocidente cogita uma intervenção para pôr fim à barbárie praticada contra os palestinos. Muito pelo contrário, o apoio ao governo de extrema-direita e genocida de Benjamin Netanyahu foi mais do que reforçado política, econômica e militarmente.
No fundo, apesar de poupada pela imprensa ocidental, Power sabe muito bem a gravidade da escolha que fez: tornar-se, ela mesma, a mais nova “espectadora do genocídio”.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas:
[1] Sobre as ‘Novas Guerras’, ver: Kaldor, M. (2012). New & Old Wars: Organised Violence in a Global Era. Cambridge: Polity Press.
[2] Power, S. (2002) A Problem From Hell: America and the Age of Genocide. New York: Basic Books.
[3] Segundo o folclore disciplinar em Relações Internacionais, o moderno sistema de Estados soberanos advém da Paz de Vestfália em 1648, que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos.
[4] Como é chamado o Ministério das Relações Exteriores nos Estados Unidos da América.
[5] Para mais sobre este episódio e sua trajetória em geral, ver: Hayden, T. “Samantha Power Goes to War”. The Nation, March 30th 2011.