Foi pouco notado, mas os dois acontecimentos que tomaram as manchetes internacionais da última semana estão conectados: a morte de Serguei Navalny na Rússia e o genocídio em curso na Palestina. Mas o que o falecimento (suspeito) de um político russo de extrema-direita tem a ver com o ataque israelense à Faixa de Gaza? Mais do que se poderia supor.
O mais famoso (fora da Rússia) “opositor de Putin” foi alçado à categoria de paladino da liberdade pelo Ocidente.[1] A União Europeia chegou ao ponto de anunciar que batizará com o nome de Navalny o seu regime de sanções sobre direitos humanos. O problema é que o falecido político advogava justamente pelo oposto em sua vida pública, chegando a fazer campanha eleitoral na televisão em que pregava o assassinato a tiros de imigrantes muçulmanos, os quais, para Navalvy, significavam terroristas, gente sub-humana, uma praga em seu país. Rússia para os russos étnicos! – tal era seu slogan político.
A islamofobia de Navalny, ademais, trazia sutis referências neonazistas. Ao comparar os muçulmanos a mosquitos e baratas (insetos), ele fazia uma alusão à famosa analogia de Hitler – que se referia aos judeus como uma praga que infestara o corpo social alemão – e que, portanto, deveriam “morrer como piolhos” (insetos) nas câmaras de gás.
Não se trata de um vídeo-denúncia que vazou nas redes sociais, mas de um filme oficial de sua propaganda eleitoral. No afã de criar uma figura pública, sob seu controle, para desestabilizar o regime russo, o Ocidente terminou por inflar as credenciais de alguém que conseguiu a proeza de ser um opositor ainda mais à direita do que Putin, que ao seu lado quase parece um liberal. O arrependimento sentido pela Anistia Internacional[2] em 2021, após averiguar mais atentamente os posicionamentos políticos de Navalny (sobre os quais ele nunca se retratou), infelizmente não foi seguido de medidas igualmente sensatas pelo restante dos formadores da opinião pública ocidental.
Nós na América Latina também conhecemos tal expediente, que faz parte da tradicional estratégia estadunidense de dar apoio diplomático, financeiro e até armamentos aos piores elementos políticos disponíveis, desde que estejam em oposição a líderes ou regimes insubmissos a Washington: de esquadrões da morte em El Salvador ou “Contras” na Nicarágua sandinista dos anos 80; até os atuais terroristas de extrema-direita na Venezuela comandados por Leopoldo López e Juan Guaidó.
Michał Siergiejevicz / Wiki Commons
O opositor russo Alexei Navalny, recentemente morto, durante marcha em memória de Boris Nemtsov. 29/02/2020
Ainda assim, a cacofonia criada por esta desinformação proposital confunde a muitos setores progressistas, que sentem a tentação de exaltar figuras controversas (para dizer o mínimo) em seu afã de criticar Putin ou Maduro. Embarcar na hipocrisia liberal, hegemônica no Norte global é, no entanto, uma postura perigosa demais para quem se considere de esquerda hoje.
Principalmente para aqueles que, agora, corretamente se exasperam com a carnificina sem limites praticada pelas forças israelenses em Gaza. Pois uma coisa é certa: Navalny pouco se importava com vidas palestinas. Pelo contrário, como um advogado do extermínio de árabes e muçulmanos (os “insetos”) em seu país natal, este “opositor russo” já se adiantara à atual campanha genocida de Netanyahu em Gaza. Campanha esta que ele pretendia imitar na Rússia, caso eleito um dia, conforme suas próprias palavras.[3] Um genocida avant la lettre.
Por outro lado, é verdade que militantes anti-imperialistas irlandeses ou nacionalistas indianos também ensaiaram alianças táticas com o regime nazista para alavancar suas respectivas lutas de libertação contra o colonialismo britânico.[4] Não é fácil censurá-los diante da barbárie vivida sob dominação inglesa. Porém, a tática de que o inimigo do meu inimigo pode virar meu aliado precisa ser adotada com muita cautela e consciência, caso opte-se por uma via drástica como esta. E não parece ser o caso daqueles que hoje embarcam na exaltação de Navalny como um “mártir”, tal como feito pela imprensa ocidental (e seus estenógrafos no Brasil)[5]. A grande diferença entre os casos, porém, é óbvia: os irlandeses e indianos sabiam que estavam lidando com nazistas (o que não era nada desconfortável para muitos nacionalistas hindus); mas, hoje, os europeus enaltecem a um desqualificado fascista como símbolo da luta a favor dos direitos humanos.[6]
Demasiado autoengano ou perversa manipulação? Não se sabe. Mas, diante dos fatos, é simplesmente impossível ser admirador de Navalny e, ao mesmo tempo, levantar a bandeira da “Palestina Livre”. Não dá.
O mais provável – e coerente – é que Netanyahu esteja com sinceras saudades dele, diante do ódio comum que sempre destilaram contra tudo aquilo que fosse árabe ou islâmico.[7] Mais saudade, é certo, do que qualquer palestino que luta com dignidade assombrosa contra aqueles que os consideram menos que humanos – seja na Rússia, na Europa ou nos Estados Unidos (e em Israel, é claro). Afinal, nem os judeus eram piolhos, nem os palestinos são baratas, apesar da propaganda (neo)nazi, da conivência imperial-ocidental e da atual confusão ideológica reinante na esquerda mundial, especialmente quando se trata de algum tema internacional.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas: