A eleição de Javier Milei na Argentina surpreendeu a todos. Menos a Pablo Stefanoni. O analista político argentino e chefe de redação da revista Nueva Sociedad parece ter sido o único que, há anos, já alertava para a possível vitória de Milei. O acerto de Stefanoni não foi casual, pois obedeceu ao argumento central de seu último livro, exposto já no título: “A Rebeldia Agora é de Direita?” (2021).[1] A partir de exemplos empíricos sob fino trato teórico, Stefanoni foi capaz de antever o sucesso da estratégia política adotada por Milei e compartilhada por outros expoentes da direita contemporânea mundo afora.
Do ponto de vista ideológico, tal estratégia baseia-se sobretudo em oferecer um conteúdo político conservador à insatisfação massiva sentida por largos setores da população na era do capitalismo globalizado, monopolista e neoliberal. A questão é que, ao invés desta caracterização, típica da esquerda de outrora, Milei oferece uma explicação invertida, na qual “o sistema” não é composto por banqueiros, mega industriais ou latifundiários, mas pelos agentes “coletivistas” de um “totalitarismo progressista” que supostamente domina, de forma conspiratória, o mundo atual. A crítica esquerdista da globalização neoliberal torna-se a crítica direitista ao globalismo plutocrático. A esquerda não apenas tem uma pauta sequestrada, mas é apresentada como a nova vilã, ela mesma, das mazelas da vida cotidiana.
Nesta versão, seria por conta do progressismo e do esquerdismo que o mundo está como está. É por isso que Stefanoni corretamente caracteriza esta eleição como um “motim eleitoral antiprogressista”, que revelou grande sucesso na criação de um campo político (que também é popular, a seu jeito) a partir da articulação de demandas e identidades em oposição ao significante-mestre que simboliza o tal sistema: “la casta”, como Milei a apelidou.[2]
A ousadia foi tamanha a ponto de Milei também sequestrar o lema da rebelião anti-neoliberal da virada do século – “que se vayan todos” – para sua própria agenda política ultraliberal. Se palavras de ordem ditas libertárias como “¡viva la libertad, carajo!” mostram a disputa permanente sobre o conceito de liberdade, o atual sequestro das identidades rebeldes fica mais evidente ainda com a banalização de um oxímoro tão absurdo como “anarcocapitalismo”, intensamente usado para descrever Milei. O anarquismo, sequestrado de sua tradição natural na extrema-esquerda, é incorporado como marcador de rebeldia, radicalidade e enfrentamento ao poder, sobretudo do Estado (mas depurado de sua visão sobre a luta de classes, do ódio à burguesia e do anticlericalismo que marcam a obra de Bakunin, Kropotkin ou Malatesta). O sequestro ideológico é sempre seletivo: as desavenças de Milei com o Papa Francisco devem-se à acusação de ser um comunista infiltrado, não por ser o chefe da Igreja.[3]
Um tipo de sequestro que distorce, portanto, antigas pautas em proveito de sua nova função política dentro de uma narrativa antissistema mobilizadora. Mobiliza porque politiza, não obstante o grau de afastamento da realidade: os lugares privilegiados do “marxismo cultural” e da “ideologia de gênero” nesta estratégia discursiva falam por si próprios. Distorcem-na, mas não fogem ao debate; pelo contrário, fomentam-no, em seus próprios termos. Tomam-lhe a dianteira, falam para os seus, consolidam as suas bases. Por fim, ganham eleições.
Oliver Kornblihtt / Mídia NINJA
Comício de encerramento de campanha do Javier Milei, em uma casa de shows de Buenos Aires
Como bem lembrado por Stefanoni, frente a tamanha macro explicação, a micro militância individual feita por pessoas em vagões de metrô em Buenos Aires, contando seu sofrimento durante a ditadura, não foi capaz de se contrapor com eficácia ao quadro interpretativo – e apelativo – da realidade, ofertado pela direita radical. Tal tática também fracassara no Brasil às vésperas da eleição de Bolsonaro em 2018, quando indivíduos ofereciam café ou bolo para transeuntes aleatórios que se dispusessem a conversar sobre a eleição e entender porquê “ele não”.
Esta tática, que Stefanoni chama de “voto-barreira”, novamente se demonstra insuficiente quando não vem acompanhada de um discurso positivo e mobilizador. E, não menos importante, de uma figura carismática à altura de fazê-lo cativante. Algo que Sergio Massa, oponente de Milei, foi incapaz de encarnar, até por conta de sua eficiência tecnocrática ao citar números e atos administrativos do governo, o que só lhe colocou ainda mais no papel caricato de “político profissional” denunciado por Milei: um membro de “la casta”.
Cria-se, assim, uma difícil escolha ideológica para a esquerda radical: manter sua postura anticapitalista, i.e., avessa à institucionalidade liberal realmente existente em cada país; ou abdicar da luta antissistema e permitir, assim, o sequestro desta postura radical, que passa a ser monopólio da direita? Até o momento, transmitir a ideia de moderação parece ser o que resta para a esquerda política na América Latina. Mas será isso suficiente? Não se trata de preferência por radicalismo (que na Argentina possui seu próprio sentido) em si, mas de reconhecer que nas atuais condições do capitalismo periférico, patriarcal e racista realmente existente, as crises são permanentes e, por isso, são menos e menos prováveis que funcionem as soluções de cunho incremental-progressista (rumo ao quê?) dentro da ordem vigente.
Infelizmente, Stefanoni não nos oferece nenhuma solução fácil à vista. Cabe à esquerda reconhecer o problema e enfrentá-lo com coragem. Sua perspicaz abordagem, ao menos, obriga-nos a refletir seriamente sobre as questões de estratégia ideológica que vêm se demonstrando cruciais para a determinação dos resultados políticos no mundo atual.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.
Notas:
[1] Stefanoni, P. (2021) ¿La rebeldia se volvió de derecha? Cómo el antiprogresismo y la anticorrección política
están construyendo un nuevo sentido común (y por qué la izquierda debería tomarlos en serio). Buenos Aires: Siglo XXI Editores.
[2] Para uma análise pós-eleitoral, ver: Stefanoni, P.; Schuster, M. “O Furacão Milei”. Nueva Sociedad, nov. 2023, disponível em (acesso em dez/2023): https://nuso.org/articulo/el-huracan-milei/pt/.
[3] O que explica, aliás, o fato de não ter perdido o voto dos católicos argentinos mesmo após classificar um Papa como ‘maligno’, ‘diabólico’ ou ‘imbecil’. Muitos católicos conservadores sentiram-se, ao contrário, representados por tais declarações, que nada têm de anarquistas. Ver, a respeito (acesso em dezembro/2023): https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/de-imbecil-a-sua-santidade-milei-muda-de-tom-sobre-papa-francisco/