As autoridades que lideram o Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP) no Níger afirmam que o golpe contra o presidente Mohamed Bazoum se deveu à “contínua deterioração da situação de segurança” e à “má administração econômica e social”. Os fatos em campo provam que eles estão certos, já que a crise é resultado do surgimento de grupos jihadistas na nação nigerina e nos países vizinhos que, juntos, formam o território geográfico do Sahel, rico em minerais, energia e recursos estratégicos.
A maioria dos informes destaca essa região no flanco norte da África como um epicentro do jihadismo africano. As atividades de grupos extremistas como o Ansar Al-Din (Mali) e o Boko Haram (Nigéria) ampliaram a instabilidade governamental na área, de acordo com o Índice Global de Terrorismo 2023.
Todas as tentativas das potências estrangeiras no continente africano para combater o terrorismo foram marcadas por reveses e frustrações, pois onde quer que essas organizações tenham sido confrontadas, a violência e o comércio ilícito aumentaram.
Assim, o fracasso da Coalizão do Sahel, um programa liderado pela França juntamente com Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger, criado em 2020, minou a posição da França na África. Além de despertar um sentimento antifrancês generalizado entre a população outrora colonial, os esforços da guerra contra o terror não aliviaram a situação, resultando na mobilização de tropas estrangeiras nos países mencionados no ponto anterior.
Esse enfraquecimento foi explorado pelas principais potências em disputa no cenário internacional: Estados Unidos, China e Rússia. Os dois últimos se voltaram para o estabelecimento de relações de cooperação nas áreas de diplomacia e relações internacionais, economia, finanças, comércio e segurança – os asiáticos as vêm forjando há três décadas. O primeiro tem se envolvido nas áreas de investimento financeiro em recursos estratégicos e seu emprego militar tem coberto a maior parte do continente africano.
O Africom (Comando dos EUA para a África) tem escapado furtivamente dos olhos do mundo. O jornalista Nick Turse tem mais de uma década de reportagens sobre os movimentos do Pentágono na África, onde tem desempenhado um papel proeminente nos principais problemas de desestabilização e caos, mesmo que afirme estar no negócio de “prevenção de conflitos”.
A sede da Africom está localizada em Stuttgart, na Alemanha, porque todos os países africanos se recusam a sediá-la. Criada em 2007, durante o governo de George W. Bush, e em pleno funcionamento desde 2008, a Africom foi fundada para delegar e expandir as operações do Comando Central (Centcom) no continente, onde os militares dos EUA já tinham uma presença significativa na região leste, especificamente na Etiópia, Eritreia, Quênia, Somália, Sudão do Sul e Djibuti. Hoje, os EUA têm operações em todos os países, exceto no Egito, que continua sob a responsabilidade do Centcom.
Sua trajetória é marcada por crimes de guerra – por exemplo, o bombardeio de civis -, operações secretas e encobertas – os EUA realizaram pelo menos 36 operações na África na década de 2010, muitas delas sem consultar o Congresso ou o Senado -, agressões raciais e sexuais por parte de suas tropas em campo e uma série de outras denúncias.
A ligação feita por Turse em seu livro Tomorrow's Blattefield (2015) entre as guerras secretas da Africom e os múltiplos conflitos étnicos, religiosos, econômicos e financeiros em todas as regiões africanas, incluindo o Sahel, confirma que os EUA têm uma agenda de desestabilização da região. Nos locais onde iniciam operações antiterrorismo, novas células de grupos extremistas estão nascendo.
Desde que o governo de George W. Bush declarou a “guerra ao terror” em 2001, “o número de grupos terroristas que ameaçam os americanos e seus interesses, de acordo com o Departamento de Estado, mais do que dobrou”, explica Turse em um relatório de janeiro de 2022.
Os EUA fazem uso de uma lei, a Autorização para o Uso da Força Militar (AUMF) de 2001, que foi prorrogada por quatro administrações sucessivas e autoriza os militares dos EUA a “treinar e equipar forças estrangeiras em qualquer lugar do mundo”, além de dar ao Pentágono o sinal verde para “fornecer apoio a forças estrangeiras, paramilitares e privadas, que, por sua vez, apoiam as operações de contraterrorismo dos EUA”, dando ao poder executivo o poder discricionário de iniciar guerras sem a aprovação do Congresso. Os programas incluem operações em Camarões, Egito, Quênia, Líbano, Líbia, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Somália, Síria, Tunísia, Afeganistão, Iraque e Iêmen, para onde tropas foram enviadas secretamente e guerras secretas foram travadas usando como justificativa a guerra contra o terrorismo.
Kulani Lakanaria / AFRICOM
Soldados nigerinos participam do exercício militar Flintlock 2017
O jornalista Jim Lobe reportou em novembro de 2022 que “quatro soldados norte-americanos foram enviados ao Níger sob um programa de 'cooperação de segurança' conhecido como Seção 333, que autoriza o Pentágono a 'treinar e equipar' forças estrangeiras em qualquer lugar do mundo. No entanto, a presença deles em campo foi endossada por uma ordem executiva permanente, ou Exord, que permite que as forças dos EUA entrem em combate em circunstâncias específicas, uma autorização paralela da qual o Congresso não havia sido informado anteriormente. O incidente foi uma surpresa para os legisladores, que não sabiam que as tropas de seu país estavam operando em solo nigerino”.
A opacidade da Africom está sendo exposta por um jornalismo verdadeiramente independente. Turse já demonstrou também o vínculo dos EUA com o treinamento de oficiais que lideraram golpes bem-sucedidos desde 2008: Burkina Faso, Mali, Guiné, Mauritânia e Gâmbia, além de expor a existência de bases militares sigilosas, operações secretas de espionagem e missões clandestinas. Tudo isso criou um cenário de implosão constante em diferentes regiões da África.
Como o Sahel é um dos focos do terrorismo e suas operações em Burkina Faso, Mali e Níger resultaram em mais uma explosão de violência e caos, é compreensível a animosidade das autoridades que tomaram o poder à força em seus respectivos países em nome da segurança e da estabilidade e a favor da expulsão de tropas e bases estrangeiras – o Níger abriga a maior base de drones dos EUA no continente, além de milhares de militares franceses, alemães e italianos – e do envolvimento chinês e russo em termos de segurança estratégica, mas também de economia e finanças.
Na recente cúpula Rússia-África em São Petersburgo, o presidente Vladimir Putin assinou acordos de cooperação técnico-militar com mais de 40 países africanos para fornecer-lhes armas e equipamentos militares. Alguns desses tratados incluíam o fornecimento de serviços gratuitos – por exemplo, em Burkina Faso – na esfera da luta contra o terrorismo promovida pelos próprios Estados, sem a assistência da Africom, da França ou de qualquer outra potência europeia.
Deve-se mencionar o envolvimento do Grupo Wagner, a empresa militar privada russa do falecido Yevgeny Prighozin na Argélia e em outros países africanos, já que prestou assistência na estabilização de vários focos de conflito armado na região do Sahel. Os contratos de segurança com os russos incluem o Wagner como um fator importante nas operações de assistência militar no exterior, como vimos na batalha de Artyomovsk/Bakhmut na guerra da Ucrânia.
Por outro lado, a China tem um relacionamento extenso com o G5 Sahel (Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger) por meio de acordos de segurança que envolvem armas, dinheiro e prestadores de serviços de segurança – também russos. Enquanto a Federação eslava fornece uma estrutura de segurança abrangente para os países interessados em combater o terrorismo sob um conjunto diferente de ideias, visões e estratégias, a China alimenta a equação com o aspecto infraestrutural e digital, de acordo com um esquema de investimento – no valor de 2 trilhões de dólares nos últimos 10 anos – para preservar os interesses de Pequim na região.
A disputa geopolítica e geoeconômica na África, e no Sahel em particular, envolve os elementos de segurança, economia e finanças, que custam caro quando se trata da estabilidade alardeada pelos governos que chegaram ao poder por meio do golpe militar. A China e a Rússia parecem estar ganhando vantagem no cenário internacional por meio da cooperação de tipo multipolar. Os EUA, por sua vez, e tendo em vista o enfraquecimento da França na região, estão tentando participar do tabuleiro de xadrez africano com a Parceria Global de Infraestrutura e Investimento, com o objetivo de “mobilizar 600 bilhões de dólares até 2027” em toda a África, além de continuar suas operações militares por meio do Africom, uma grande porcentagem das quais não é relatada ou coordenada com os países onde ocorrem.
A questão energética é uma variável central nesse tabuleiro. O confronto entre os blocos atlântico e eurasiano gerou uma ruptura nas cadeias de suprimentos e nos projetos de conectividade relacionados ao fluxo de petróleo e gás na Europa e em suas adjacências transfronteiriças como resultado da guerra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) contra a Federação Russa. Os efeitos do conflito russo-ucraniano chegam até a África, com a desestabilização política da rota de gás construída para o gasoduto trans-saariano, projetado para conectar a Nigéria à Argélia – ou seja, através do Sahel – com uma saída para a União Europeia.
Um dos epicentros geopolíticos e geoeconômicos mais importantes do mundo está localizado nesse território. O foco no Níger é determinado, em parte e geopoliticamente, pelas circunstâncias apresentadas aqui, aquelas que motivaram as ações dos militares patrióticos que estão assumindo o poder no Sahel, incentivados por um projeto pan-africano abrangente com voz própria no concerto internacional. Trata-se de um dos episódios geopolíticos mais importantes da década atual.