Para alguns analistas interessados, a hegemonia do dólar terminando, os mais otimistas chegam até a anunciar que fim será em breve. Para outros, muito mais interessados, o dólar apresenta boa saúde e seu poder geoeconômico global permanece intacto. Para estes últimos, a renovada “ameaça” da moeda do Brics não representa perigo, apesar de estar lastreada em mais de 32% do PIB global.
O que não deixa nenhuma sombra de dúvida é que estão em curso processos de grande escala, desde a crise financeira de 2008, passando por alguns casos de “esfriamento” da economia dos Estados Unidos, a pandemia, a guerra na Ucrânia, e todos esses processos estão configurando uma nova ordem mundial multipolar que, entre outros fatores, traz consigo não só a diversificação cambial mas também a desmilitarização do dólar.
Alguns “especialistas” tendem a confundir os efeitos da desdolarização das economias domésticas, colocando no mesmo patamar de análise a questão das transações financeiras do planeta. Sem pretensão conclusiva, pode-se dizer que a desdolarização doméstica é apenas uma redução do uso do dólar nas transações internas.
No caso das transações financeiras internacionais, se trata de um processo mais atrelado à multipolaridade em curso. Seu objetivo é impedir o uso do dólar norte-americano como ferramenta geopolítica. É, coloquialmente, geopolítica no modo dólar x yuan x moeda do Brics.
Embora a guerra seja a expressão mais brutal da geopolítica, existem outras formas que podem ter impactos tão letais quanto os causados pela guerra. É o caso da cascata de sanções dos Estados Unidos contra a Rússia, embora os impactos finais ainda não tenham sido vistos, é um exemplo claro de como, ao militarizar o dólar e transformá-lo em uma ferramenta geopolítica, Washington colocou a economia russa e o sistema financeiro em apuros.
Diante do uso discricionário da “moeda comum” por parte dos Estados Unidos, países como Rússia, China e outros que concentram o comércio mundial em bens e serviços estratégicos decidiram questionar a onipresença do dólar em suas transações financeiras. Não havia justificativa para que os preços dos alimentos, do gás e do petróleo continuassem fixados em dólares.
É aqui que começa a história global da desdolarização das transações financeiras.
Um fantasma anda pelo mundo
Como se fosse um fantasma, a desdolarização (ainda que incipiente, por enquanto) percorre o mundo, assustando os Estados Unidos e os países do Ocidente alinhados ao seu poder. Por outro lado, no real, a emergência de um mundo multipolar alimenta também o surgimento de uma espécie de “moeda de ordem multipolar”.
O que é verdade nesta história? Dizer que não existe tal circunstância é querer tapar o sol com a peneira. Mas, a partir daí, afirmar que o dólar está em terapia intensiva é um exagero. O debate, porém, é um alerta para que algo está acontecendo no sistema monetário internacional criado em Bretton Woods (1944).
Os resultados não serão vistos nos próximos meses, nem mesmo no médio prazo. Geralmente, são processos longos, que podem durar 30 ou 40 anos, numa perspectiva otimista. Vejamos dois indicadores-chave.
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Questionamentos à hegemonia do dólar faz parte de mudança na ordem mundial, que dificilmente poderá ser freada pelos Estados Unidos
Em primeiro lugar, o dólar continua a ser a moeda mais utilizada (como moeda comum) no comércio mundial de bens e serviços. Em 2019, 88% das transações comerciais utilizaram o dólar, 32% usaram o euro, 17% foram negociadas com o iene japonês; 13% com a libra esterlina.
Enquanto isso, o yuan chinês, a moeda que supostamente ameaça o dólar, serviu apenas para 4% das transações em todo o mundo, apesar de ser a divisa da segunda economia mais poderosa do planeta.
Em segundo lugar, quanto ao seu status de moeda de reserva mundial, verifica-se que, em 2021, 59% das reservas monetárias internacionais dos Estados eram em dólares norte-americanos; 20% em euros; 3% em yuan chinês.
Como se vê, a supremacia do dólar é inquestionável. É irreal pensar que o dólar deixará de ser o que é agora, uma ferramenta geopolítica. Até o momento, o dólar goza de boa saúde e, por outro lado, o yuan chinês, que se tornou uma ameaça à “segurança nacional dos Estados Unidos”, é como um fantasma criado pela imprensa ocidental, e que atende às indicações do Departamento de Estado norte-americano.
No entanto, os “fantasmas” adquirem graus de materialidade quando as tendências mostram evidências empíricas de que o uso do dólar está diminuindo, e que aqueles que promovem essa tendência não cessarão até que a divisa deixe de ser uma ferramenta útil para a hegemonia norte-americana.
Trata-se, diplomaticamente falando, de diversificar o cardápio de moedas que permitem acumular reservas internacionais, sem depender do dólar. Daí a efervescência dos processos em curso destinados a quebrar o dólar.
Seguindo essa lógica, alguns países vêm construindo acordos bilaterais ou multilaterais que descartam o dólar ou evitam que ele seja o único meio de pagamento. Por exemplo: 70% do comércio internacional entre a China e a Rússia é feito com yuan ou rublo.
Rússia e Índia passaram a comercializar petróleo em rúpias. Rússia e Bolívia concordaram que as importações bolivianas de Moscou seriam pagas em bolivianos. Brasil e China decidiram usar suas moedas nas transações financeiras entre ambos.
Outro mecanismo de desdolarização foi adotado por Argentina e China, que concordaram em utilizar o swap de seus bancos centrais, o que permite utilizar o yuan como meio de pagamento em suas transações comerciais. Este último mecanismo pode ser replicado em outros países que fazem negócios com a China.
Além disso, algo maior está em andamento: a substituição do swift, sistema que facilita o sistema de pagamentos e transferências internacionais sob controle dos Estados Unidos, por outro sistema semelhante, ou talvez mais eficiente, que a China implementou usando sua rede de bancos e passou a oferecer àqueles países interessados em deixar de depender do Ocidente – muitos deles, assustados com a escalada de sanções contra a Rússia, supondo que algo assim também pode afetá-los no futuro.
O que foi dito até agora não é um anúncio de situações iminentes de mudança no sistema monetário internacional, mas uma confirmação de que a mudança já começou, e que não tem volta. Não serão processos que de curto prazo, mas sim no longo prazo. Faz parte do multilateralismo em curso, que configura cenários para uma nova ordem mundial, a qual dificilmente poderá ser freada pelos Estados Unidos e seus aliados.
Daí o pânico que se apodera dos bancos centrais, que procuram comprar todo o ouro que puderem para terem reservas internacionais “sólidas”, diante da volatilidade do dólar, da desdolarização das transações financeiras, da desdolarização das reservas internacionais, etc.