O governo da presidente Dina Boluarte, manipulado pelo Congresso de maioria fujimorista e pelos poderes fáticos, acreditava que as duas primeiras ondas de protestos popular no Peru – uma realizada em dezembro de 2022, a outra em fevereiro de 2023 – não voltariam a acontecer após a forte e criminosa repressão policial.
A repressão, aliás, causou mais de 70 mortes, 49 delas com características de execuções extrajudiciais, segundo informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. As forças ultraconservadoras cantaram vitória.
Mas o clima voltou a mudar nas últimas semanas, jogando água no chope dessa “vitória”. Os ventos de insurgência popular continuam soprando no Peru profundo, geraram pânico naqueles que acreditavam que os métodos fascistas de repressão e controle da cidadania por meio da violência seriam suficientes para esmagar os movimentos sociais.
Em março de 2023, as forças populares que comandaram as duas primeiras grandes marchas a Lima neste ano, com caravanas partindo de diferentes pontos do país, admitiram que algo estava errado na organização e decidiram adiar novos eventos para refinar as estratégias para uma futura terceira marcha à capital.
Desde então, em todas as regiões do Peru, foram realizadas assembleias massivas para avaliar os fatos e analisar os cenários possíveis. Os “vitoriosos” não entenderam esses episódios em seu momento e perceberam tarde demais o que isso significava.
Como resultado desse processo reflexivo e intensos de debates, os movimentos chegaram a conclusões que permitem traçar novos caminhos para o protesto popular, buscando não cometer os erros que foram aproveitados pelas forças de repressão nas marchas anteriores.
Nesta perspectiva, a terceira “Tomada de Lima”, marcada para julho, ganha forma e realismo, o que amedronta a direita política e empresarial, ao mesmo tempo em que abala as forças repressivas. Que cenários se abrem neste período de luta?
O governo, como em qualquer estratégia de confronto, prepara suas forças para enfrentar diferentes cenários. Seu repertório inclui métodos já conhecidos, usados nas “vitórias” anteriores. Desta vez, porém, deve contar com assessoria direta do Departamento de Estado e dos 700 militares norte-americanos que se instalarão em Lima e arredores a partir de junho e até dezembro.
O empresariado, agrupado na Confederação Nacional de Instituições Empresariais Privadas do Peru (CONFIEP), continuará apoiando qualquer coisa que garanta seus “lucros”, com Dina ou sem Dina na Presidência. Nesse contexto, cheio de complexidades, podemos visualizar os seguintes cenários:
1. A terceira onda de protestos promovida pelos movimentos sociais, visando a “tomada de Lima”, independentemente de suas características e dimensões, é um fato que vem tirando o sono da ultradireita política e empresarial. O governo à mercê dos poderes fáticos está preparando uma estratégia contra os insurgentes que inclui uma repressão brutal, apesar de um discurso que promete “evitar ao máximo mais mortes”. Com isso, buscarão desmobilizar e liquidar a insatisfação popular.
2. Caso a onda de protestos se torne contundente, Boluarte pode perder o apoio político e ser obrigada a se afastar e a convocar eleições antecipadas. Este cenário tem como pressuposto concomitante a entrega do controle absoluto do aparato do Estado, incluindo os órgãos eleitorais e o Judiciário, às forças ultraconservadoras que hoje governam o Peru de forma indireta, o que permitiria inclusive a realização de reformas eleitorais a seu favor.
3. Se as eleições forem antecipadas, por pressão popular e/ou por conveniência da própria direita, a reivindicação de uma nova Constituição – e de uma Constituinte que a escreva – ganharia força, e não seria surpresa se essa consulta popular viesse a acontecer.
4. Um cenário que parece um pesadelo para alguns e uma utopia para outros é a reintegração de Pedro Castillo na Presidência. Esta eventualidade não seria produto de lutas populares, mas sim uma decisão com a bênção dos poderes constituídos. Como assim? Esse possível retorno dividiria ainda mais a esquerda, os movimentos sociais e outras forças progressistas. Ao mesmo tempo, dariam aos poderes fáticos um presidente submisso, que se encarregaria de manter o modelo, prometendo mudanças que nunca virão.
5. Organismos internacionais (ONU, CIDH, OEA, entre outros) manifestaram sua condenação ao regime genocida de Boluarte. Mas, como costuma acontecer, novas expressões de repúdio não serão elementos decisivos no curso da crise, e sim as consequências provocadas pelas contradições internas.
6. O cenário mais plausível, sem alterar as atuais condições objetivas e subjetivas, é que, entre trancos e barrancos, o regime espúrio e criminoso de Boluarte se mantenha até 2026.
Movimento Otras Voces
Movimentos sociais peruanos preparam nova onda de protestos no país para julho
Contra insurgência com apoio norte-americano
O desacreditado Congresso peruano aprovou recentemente uma resolução que autoriza a entrada de 700 soldados norte-americanos em território nacional, onde permanecerão entre 1º de junho e 31 de dezembro de 2023. Que oportuno, não? A falsa discrição com que o assunto foi tratado apenas confirmou a intenção dissuasiva revelada pela presença dos militares especializados na contra insurgência, reforçando a lógica repressiva do regime, sobretudo quando é de conhecimento público o relançamento da revolta popular.
Rumores indicam que os soldados estrangeiros virão para “treinar as Forças Armadas e a Polícia Nacional do Peru”, segundo os métodos da Doutrina de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a mesma que é incutida em nossas tropas ano após ano em seu centro de treinamentos no Panamá.
De acordo com essa doutrina, os protestos populares constituem uma “ameaça” à segurança dos Estados Unidos. Embora os apologistas do imperialismo o neguem, esta ação militar é uma clara ingerência nos assuntos internos do Peru, desde o momento em que a embaixadora dos Estados Unidos, Lisa Kenna, endossou o golpe parlamentar de 7 de dezembro de 2022.
Sabe-se que as tropas gringas realizarão atividades em Lima, Callao, Cusco, Ayacucho, Huánuco, Pasco, Junín, Huancavelica e Apurímac. Exatamente em lugares onde os protestos são mais intensos. Seria uma coincidência? Curiosamente, não estarão em Puno, onde foram registradas mais mortes. Ao menos, não farão isso publicamente.
Papel da esquerda, jogo de soma zero
A esquerda peruana reluta em aceitar suas falhas e superar as feridas do passado. Assim, o movimento popular, politicamente orientado pelas vanguardas políticas de esquerda, sente-se órfão desse acompanhamento e, muitas vezes, cai na armadilha de aventureiros autoproclamados com discursos incendiários ou “radicais”, que acabam levando proezas político-sociais ao precipício, como vem acontecendo desde dezembro de 2022.
Apesar de alguns esforços importantes, a Coordenadoria de Organizações de Esquerda e Populares (COIP), com suas 12 organizações políticas, continua sendo um jogo de soma zero. O seu lento amadurecimento em termos políticos e orgânicos revela problemas estruturais, com “líderes históricos” que resistem à mudança, enquanto os “líderes das novas gerações” ainda não mostram força suficiente para mudar este estado de coisas.
Sua obstinada recusa em se tornar um similar, ainda que distante, do que foi a Esquerda Unida, torna a COIP um projeto sem pé nem cabeça, sem horizontes nem objetivos. A decisão de ter dois coordenadores de plantão a cada dois meses não significa quase nada. A continuidade parece ser um privilégio alheia e a possibilidade de posicionar a esquerda no Peru continua sendo uma tarefa pendente.
Após dois anos atuando como “coordenadora” do setor, a COIP não dá sinais de se tornará uma referência política de esquerda. Quem se beneficia dessa soma zero?
O projeto Unidade Popular-Frente Política (UP-FP) é uma opção que nasceu dentro da COIP e vem conseguindo colocar as concordâncias acima das diferenças, buscando promover o mesmo espírito entre todos os seus integrantes, mas também mostrando que é possível construir maiores forças sob os ensinamentos de Juan Carlos Mariátegui.
A UP-FP é formada por quatro organizações políticas: Convergência Socialista, liderada por Humberto Morales; Unidade Popular, liderada por Duberlí Rodríguez; Movimento de Libertação 19 de julho, liderado por Dante Castro; e Movimento Democrático Popular, liderado por Juan Fernández. Após quatro meses da assinatura do acordo político, seus resultados são muito mais plausíveis do que os alcançados pela COIP, não apenas no campo orgânico, mas também no político e ético, conseguindo resgatar valores que 30 anos de neoliberalismo destruíram no comportamento humano, especialmente na atividade política: confiança, solidariedade, ação coletiva, companheirismo e camaradagem.
Dos políticos de esquerda presentes no Congresso só resta o nome, já que os que hoje pululam dentro dele com rótulos esquerdistas são apenas fantasmas que circulam no prédio em ruínas, esperando todos os meses por salários suculentos e gratificações por trabalhos que não fazem. O parasitismo, a arte de viver sem produzir, tomou conta desses parlamentares outrora canhotos.