Em 7 de dezembro de 2022, graças a um contragolpe da extrema direita que depõe Pedro Castillo após sua “pueril” tentativa de golpe, Dina Boluarte é nomeada presidente do Peru por um desacreditado Congresso da República. Líder com poder estrangeiro desde então, Boluarte completou um ano de mandato em 7 de dezembro de 2023, durante o qual personificou o servilismo político, a impunidade e a corrupção que assola todo o aparelho do Estado.
Os poderes de fato (empresas, imprensa, Forças Armadas, entre outros) não só aplaudem para isto, mas também cobram um preço pela sua “importante contribuição para a democracia e as instituições” no Peru. Conseguiram, como objetivo principal, concentrar todo o poder político e institucional, deixando que o Congresso administre conforme a sua livre vontade.
O balanço do ano de gestão de Boluarte é quase apocalíptico:
- Crimes contra a humanidade e conflitos jurídicos com características típicas de regimes fascistas. Mais de 70 mortes, sendo 49 delas em massacres considerados crimes contra a humanidade durante os protestos populares contra o regime, entre dezembro de 2022 e março de 2023. Até o momento, 12 meses após os acontecimentos, não há responsáveis e paira um pano de impunidade sobre aqueles que ordenaram “atirar para matar”, sobre os “responsáveis diretos” ou sobre aqueles que “permitiram que isso acontecesse”. A justiça para os enlutados e familiares não chega e, aparentemente, não virá enquanto os autores do crime permanecerem no poder, ainda mais quando as Forças Armadas estiverem envolvidas, ainda que se diga que eles “receberam ordens”. Papel desastroso das Forças Armadas e da Polícia que, durante duas décadas, mantiveram as formas e tentaram ser “neutras” de acordo com a Constituição. Sem dúvida receberam instruções do poder político para fazerem o que fizeram, o que, por outro lado, não é atenuante no julgamento dos crimes cometidos.
- Corrupção generalizada no aparelho de Estado que põe em vigor aquela frase de Manuel Gonzales Prada (1888) dedicada aos políticos e classes dominantes da época: “Resumindo, hoje o Peru é um organismo doente, onde o dedo é aplicado sai pus”. Esta situação fez uma metástase com o caso da Procuradoria Nacional em que, ao que tudo indica, uma organização criminosa liderada pela procuradora, Patrícia Benavides, operava para proteger amigos e familiares corruptos, ao mesmo tempo que criminalizava e submetia todos à chantagem judicial. Seu delito mais notável foi ter conseguido a vassalagem de 40 Deputados da República, obrigando-os a votar conforme as indicações do poderoso Procurador da Nação em troca da arquivação de processos judiciais separados e de reclamações constitucionais que cada um deles tinha. Após o Ministério Público suspender suas funções, os principais assessores do mesmo órgão e vários dos deputados estão “cantando” para ver como mitigam a responsabilidade penal que recai sobre eles.
- Crise econômica sem precedentes e reféns do mantra da “disciplina fiscal” imposto pelo Fundo Monetário Internacional. Recessão (-1% do Produto Interno Bruto) com inflação (12% em alimentação e serviços básicos), foi o que tivemos com Boluarte. As projeções otimistas para 2024 indicam que continuaremos com níveis de crescimento abaixo de 2% sem levar em conta os estragos do El Niño Costeiro e Global. O desemprego aberto (6% da População Economicamente Ativa) e a perda do poder de compra dos rendimentos familiares atingem níveis dramáticos sem grandes expectativas de recuperação a curto prazo. A informalidade cresce incessantemente, rendendo emprego precário a mais de 14 milhões de peruanos (mais de 77% da PEA) com rendimentos médios de mil soles. Neste contexto, a pobreza (33%) e a pobreza extrema (6%) em relação à população total do país estão aumentando e voltando aos níveis de 25 anos atrás. Enquanto Alex Contreras, ministro do Ministério da Economia e Finanças, discute academicamente se a mágica “regra fiscal” é respeitada ou não, a economia nacional caminha para a falência.
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Crise da democracia e da institucionalidade que beiram processos de decomposição de aparências irrecuperáveis. Nunca antes o Poder Legislativo teve uma desaprovação tão vergonhosamente elevada (93%), o Poder Executivo (88%), o Tribunal Constitucional (80%), a Ouvidoria (82%), etc. Estes indicadores revelam o grau de descrédito e deslegitimação dos poderes públicos nas mãos de setores de extrema-direita do país que, depois de muitos anos, contam com o apoio de algumas Forças Armadas, um suporte para a destruição da democracia e das instituições. Esse é o custo de ter um governo daqueles que não ganharam eleições, mas tomaram o poder através de “golpes suaves” ao longo do ano de 2023. Neste momento, o Congresso, numa altura absolutamente ditatorial, está prestes a derrubar a Junta Nacional de Justiça, órgão autônomo e independente, encarregado de nomear, avaliar, homologar e sancionar juízes e procuradores, entre outros. Nessa condição, submeteu a Procuradoria da Nação a investigação e decidiu suspendê-la por 6 meses, fato que para o Congresso é inadmissível devido às formas, procedimentos, custos e negociações que fluíram entre o Ministério Público e os 40 parlamentares que se tornaram seus vassalos.
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O isolamento internacional como consequência de recorrentes ações antidemocráticas, condutas muito distantes da diplomacia internacional e quebra de compromissos assinados pelo Peru no âmbito do Direito Internacional. É o caso da libertação abrupta, sem qualquer motivo válido, de Alberto Fujimori, preso por crimes de corrupção e crimes contra a humanidade devidamente comprovados por órgãos judiciais nacionais e internacionais. Ou o caso da morte de mais de 70 peruanos em protestos populares que foi condenada pela CIDH, sem qualquer resposta do Estado. O alinhamento servil com os Estados Unidos, em vez de favorecer a gestão de Boluarte, demonstrou uma enorme miopia em relação ao ambiente internacional e uma rendição que não se via há três ou quatro décadas. Ele destruiu o antigo prestígio da Torre Tagle. Nem mesmo a estridência com que defendem o modelo neoliberal impediu este isolamento.
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Mercenarização e “cicatrização” da “grande imprensa”. Muitos dos meios de comunicação social, jornais, rádio e televisão, “não viram os massacres”, ou esconderam a verdade dos fatos, chegando mesmo a dizer, cinicamente, que os crimes foram o resultado de “acertos de contas” entre os “próprios manifestantes”. Este “não ver” e “não ouvir” a “grande imprensa” ainda é plenamente válido mesmo em casos como o do procurador-geral. Por trás deste comportamento mercenário da imprensa estão, sem dúvida, os interesses econômicos e financeiros que lucram com a crise econômica e política. A “diversidade” dos meios de comunicação de massa não é uma coincidência, é a necessidade de parecerem “plurais” enquanto defendem, “competindo” entre si, os seus verdadeiros patronos localizados em grandes empresas e bancos nacionais e internacionais. Eles têm a “honrosa” tarefa de “defender” o amigo do regime e de “criticar” aqueles que se sentem incomodados, até destruí-los.
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Caos e desgoverno. Com a queda do procurador-geral da República, fecha-se um ciclo de desgoverno e inicia-se outro. As forças de extrema direita que concentram o poder descansaram a barba. O Legislativo está se reagrupando e moderando suas “contradições internas” para “negociar melhor” suas chances de permanecer no Executivo até 2026. Ambos os poderes sabem que dependem um do outro, qualquer que seja o papel que atribuam um ao outro. Por enquanto quem “corta o presunto” é o Legislativo com uma maioria obscura construída a partir de negociações e troca de interesses e tráfico de influência. Entretanto, o Tribunal Constitucional, também sujeito ao Congresso, bem como a Provedoria de Justiça, continuarão a prestar os seus “importantes serviços” à ditadura parlamentar, com apoio militar.
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Instabilidade política e desconfiança. Enquanto o Legislativo legisla para ficar até 2026, o Executivo mostra seu melhor perfil de desgoverno para congelar todo tipo de política pública que beneficie a população e buscar uma reativação razoável. Não só perderam a confiança dos investidores, como transformaram o Estado num verdadeiro saque levado por gangues organizadas que se autodenominam partidos políticos que representam as mais diversas facções da extrema direita. O clima de desconfiança não é fruto de protestos populares como o governo quer que acreditemos, porque apesar da grande desaprovação do Executivo e do Legislativo, as marchas têm sido relativamente fracas e surpreendentemente “pacíficas” o que reflete a eficácia da ameaça de judicialização e prisão efetiva para aqueles que “atacam a democracia e suas instituições”. Ou seja, o governo.
(*) Nilo Meza é economista e cientista político peruano.
(*) Tradução Rocio Paik.