As primárias de 30 de junho abalaram o panorama político por dois motivos: a quantidade de votantes, mais de 3 milhões de cidadãos, e o enorme apoio que recebeu a ex-presidenta Michelle Bachelet.
A partir da noite do domingo, dia 30, se instalou uma sensação térmica a respeito da corrida presidencial: cerca de um terço do padrão eleitoral possível já se pronunciou; no pelotão dos presidenciáveis foi produzida uma evasão espetacular que conseguiu dobrar os dois candidatos do governo.
A poucos dias do tsunami Michelle, já se vislumbra quais serão as tendências que estão se instalando: a luta pelo Congresso, as principais definições programáticas e a relação entre a candidata e o partido, entre outros.
Agência Efe (30/06/2013)
Apoiadores da ex-presidente Michelle Bachelet celebram vitórias nas primárias na sede do PS (Partido Socialista), em Santiago
Paralelo à campanha eleitoral, o país segue seu curso, com uma economia em desaceleração e um movimento social de olhos abertos. É claro que, como o Chile não é uma ilha, do lado de fora temos a iminente sentença do tribunal de Haia , e a primeira fissura eloquente da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), ao mostrar que a Aliança do Pacífico se trata de algo mais do que um acordo comercial, ao contrário de como vem tentando se apresentar.
Como reagem os principais atores políticos a essa nova fase? Vejamos.
O governo e a direita
Chama a atenção o fato de o governo não reconhecer a derrota política que seu setor sofreu no dia 30 de junho. Nos dias posteriores, manteve sua cartilha: ataca sistematicamente Michelle Bachelet, se coordena publicamente com os partidos e candidatos do oficialismo, beirando à intervenção, e, além disso, prossegue reiterando que se trata do melhor governo dos últimos tempos.
Desgraçadamente para o Chile, o FMI (Fundo Monetário Internacional) acaba de emitir seu juízo a respeito da economia chilena, e ajustou para baixo a meta de crescimento. Atenção, crescer em torno de 4% não é trágico, mas está longe dos 6% prometidos pelo presidente Sebastian Piñera, e pela direita, em sua campanha, e, sobretudo, longe de seu discurso autocomplacente. Outro dado não menos importante para a economia é a diminuição do preço do cobre e a diminuição do ritmo da locomotora asiática.
A baixa do preço do cobre (de US$ 4 para cerca de US$ 3) é um dado forte. É um dado do mercado global, nada a fazer sobre isso, mas se o juntamos ao custo da produção da libra de cobre na Codelco (Corporação Nacional do Cobre do Chile), a situação pede atenção. Em poucos anos, o custo aumentou de menos de 1,00 dólar por libra para mais de 2,60. A empresa estatal, em uma gestão discutível, apresenta queda em sua produtividade (comparemos com a mina de cobre dos Pelambres,uma das mais ricas do mundo), diminuiu sua contribuição com o fisco e hoje está à espera do financiamento de um novo plano de investimentos… Nos meses finais da atual administração.
Mas os porta-vozes do governo seguem em um relato de país que a maioria rejeita, se levarmos em consideração a votação de 30 de junho. Ainda assim, sua reiterada, e às vezes caricaturesca, campanha para culpar pessoalmente Michelle Bachelet do que aconteceu em 27 de fevereiro teve uma gritante rejeição dada a alta votação que recebeu a candidata nas zonas mais castigadas pelo tsunami e pelo terremoto — o mais grave que já atingiu o país.
Resumindo, o governo não lê bem o que acontece na sociedade.
De sua parte, a direita dá mostras de mais realismo. Começa uma retirada do Palácio da Moeda em direção ao Congresso, onde, graças ao bipartidarismo, a direita pretende fazer barricadas para impedir as reformas exigidas pelos movimentos sociais.
A estratégia rege que a retirada é uma das manobras mais perigosas: para salvar o grosso das tropas, abandona-se uma posição conhecida e as conduz a uma nova. Para isso, é necessário proteger a manobra com as chamadas “tropas de retaguarda”, que são as que dão cobertura para a retirada, que devem ser as mais experientes, mas mais fiéis, as que têm mais vontade combativa. Será esse o papel do candidato da União Democrática Nacional Pablo Longueira?
A direita e o governo temem que se a oposição se unir poderá ganhar em vários distritos, rompendo assim a trava que deixou a Constituição de Jaime Guzmnán, isto é, um sistema planejado para que a minoria possa vetar a maioria.
Vê-se que a batalha que virá se dará também em torno do Congresso pelo rápido resgate de Andrés Allamand, ex-candidato presidencial pela RN (Renovação Nacional): antes que se começasse uma nova travessia pelo deserto, ele foi instalado como candidato a senador pela capital.
Os últimos meses não serão fáceis para a presidência. No atual sistema, o presidente tem três papeis: chefe de Estado, chefe de Governo e líder da coalizão do governo. Não é fácil governar sendo minoria e o equilíbrio entre chefe de Estado e líder político em tempos de eleições requer comedimento, visão de longo prazo e espírito republicano.
O tsunami de 30 de junho não deixa ver o tamanho da derrota do oficialismo. A UDI (União Democrática Independente) se prepara para uma façanha que permita manter sua cota parlamentária e o RN (Renovação Nacional) procura conter os danos . Todos se perguntam por que o então pré-candidato da Nova Maioria, o independente Andrés Velasco, terminou capitalizando muitos dos votos que sociologicamente — e provavelmente ideologicamente também — seriam da direita. Liberais, mas mesmo assim da direita. Como exemplo, estão os resultados de Vitacura, onde a coalizão Nova Maioria teve uma votação histórica e foi o único distrito onde Velasco superou Michelle.
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A oposição, as pessoas querem Ela
Na oposição, os rostos estão mais do que alegres. Mas ninguém previu tamanha votação, com a notável exceção do deputado Pepe Auth.
Claudio Orrego, da coalizão Nova Maioria, triplicou o número de votos das suas primárias partidárias, o que, em um cenário de baixa votação, lhe teria dado um cômodo segundo lugar , talvez por isso escolheu uma mensagem ao “voto duro” dos sociais cristãos. Mas ninguém duvida que boa parte do eleitorado da DC (Democracia Cristã) votou por Michelle. Muitas vezes, os parlamentares da dita bancada não ocultavam esta disposição, compreensível se consideraram que meses depois eles enfrentariam um companheiro de lista que fez campanha com Michelle enquanto eles ficariam restritos a uma disciplinada campanha com Orrego. A realidade se impôs e por isso não se deve julgar a votação do DC pelo ocorrido em 30 de junho.
Velasco foi votado pelo liberalismo, pelos novos eleitores, cansados dos candidatos da Concertación (Coalizão de Partidos pela Democracia), mas também dos da coalizão Aliança Pelo Chile.Eleitores satisfeitos com “o modelo”, democráticos, partidários da ordem, de mercado que tecnicamente preferem um “produto novo”. Está por se confirmar se a alta votação que o ex-ministro recebeu vai se capitalizar em uma opção política.
Mas, acima de tudo, as primárias expressam a esmagadora adesão que tem a candidata. É um cenário no qual milhares de chilenos percebem que vivem em uma sociedade de privilégios, onde se instalaram elites que gozam de um status diferente, que no país crescem enquanto eles se endividam, e onde as autoridades não os escutam. Nesse contexto, emerge uma vontade de mudança e uma ânsia por igualdade. Parece que Michelle encarna essa vontade nacional popular, blindada por uma enorme credibilidade.
A liderança de Michelle é um tema digno de ser analisado, mas entra em campo especialmente sua espontaneidade, o que reverte em credibilidade. Um único exemplo gráfico: na noite do triunfo, ela chamou ao cenário sua família — a mãe, Angela Jerai, compareceu. A poderosa imagem de duas mulheres donas de casa, duas mulheres sozinhas, que levaram suas famílias adiante com carinho e muita garra, vale mais do que mil discursos. Contrasta com a imagem na sede da UDI, onde Longueira apareceu rodeado de políticos tradicionais e dos ministros do Palácio da Moeda.
A oposição quer otimizar seu triunfo e isso a leva a mirar no novo Congresso: se não há um acordo amplo, pode haver um cenário de uma presidenta de mãos atadas por um Congresso onde a minoria consegue, graças ao sistema bipartidário e aos chamados quórum qualificados, deter as demandas por reformas.
No que diz respeito à interessante oferta do candidato do PRO (Partido Progressista), Marco Enríquez, de formar uma lista única parlamentar, unida ao compromisso de acabar com o bipartidarismo : isso permitiria vencer em vários distritos, especialmente no norte e provavelmente em um ou dois distritos da Região Metropolitana. Sendo uma oferta objetivamente sensata, é preciso perguntar se a subjetividade existente nos partidos da Concertación com respeito ao líder do PRO pode permitir que esse acordo seja concretizado.
É certo que, se a batalha que se segue é sobre unir a maioria presidencial, uma maioria parlamentar, é aí que se abre uma linha divisória entre os candidatos da Nova Maioria e do PRO em relação aos restantes — os independentes Marcel Claude e Franco Parisi; Alfredo Sfein, do PEV (Partido Ecologista Verde) e os demais —, uma vez que nenhum deles tem força organizada capaz de expressar um acordo parlamentar.
O fato de o Congresso ser o espaço a se disputar explica o que acontece com os líderes históricos e é o caso das negociações da mesa do PS (Partido Socialista) — e também do DC — para dar uma cadeira ao senador Camilo Escalona. Mas parece que o tempo dos candidatos “de cima” não são os melhores porque os “de baixo” querem eleger eles mesmos seus representantes.
Em resumo, a oposição vive uma efervescente etapa. Nela, convivem duas lógicas. Uma é a que foi expressa nos mais de dois milhões que votaram pela mudança, e especialmente, porque Michelle lidera esse processo. Percebe-se que pode ser a oportunidade de dar fim às travas institucionais trazidas pela Constituição de Jaime Guzmán, e, assim, resolver as demandas por igualdade que a sociedade reclama. Nesse sentido, vive-se um ânimo fundacional e mobilizador, não muito diferente do espírito da maioria dos movimentos sociais. A outra lógica é a das internas partidárias e da busca de se posicionar frente ao futuro esquema de poder.
Atenção, o otimismo dos líderes da oposição não desmente que ninguém em seu interior — novamente com exceção de Auth — previu tal enxurrada de cidadãos. Será que a oposição tampouco está lendo bem o que acontece com a sociedade?
E o movimento social?
De todas as mobilizações que surgiram nestes anos, tem sido o movimento estudantil o mais consistente. Que acontecerá com suas demandas no cenário eleitoral que se abre?
Bem compreende Juan Somavía, ex-diretor geral da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ao reconhecer que, tradicionalmente na nossa história, os movimentos sociais foram cadenciados por uma expressão política. Esse foi o caso do sindicalismo e da esquerda no começo do século, das classes médias e da Frente Popular e, claramente, da mobilização contra a ditadura e do surgimento da Concertación e de seu arco-íris original.
Hoje, o movimento social conseguiu impor temas na agenda (como a educação pública de qualidade e a rejeição ao lucro), mas, em troca, toma distância dos partidos. Qual será a lógica que vai se fixar?
Alguns notam que o resultado das primárias — e alto índice de comparecimento às urnas, em especial — indica que boa parte da população quer mudanças, mas ao mesmo tempo não quer instabilidade. Para isso, opta por caminhos institucionais. É uma hipótese que terá de ser verificada com o tempo.
O mais provável é que nos meses que restam do ano, o movimento estudantil mantenha sua tônica de manifestações mensais, e eventualmente mais alguma tomada de colégio ou universidade, mas já não esperando uma resposta de um governo terminal, e sim para influenciar na campanha e no seu debate pragmático.
Não é um dado menor que nesta oportunidade vários dirigentes estudantis se candidatam ao Congresso. Não são os primeiros na nossa história: em seu momento, diversos líderes estudantis se transformaram posteriormente em dirigentes políticos, como foi o caso de Luos Maira, Jaime Ravinet, Jose Miguel Insulza, Camilo Escalona y Andrés Allamand.
O que vem por aí
O processo político estará marcado pelas eleições presidenciais e parlamentares do final do ano. A campanha hegemonizará a política.
A economia seguirá seu curso, com uma mistura não muito fácil: menos recursos e muitas expectativas. Especialmente, se nos momentos de desaceleração são maiores as resistências às reformas tributárias.
Em setembro, completam 40 anos do golpe e do início da ditadura, com uma direita que não se atreve ainda a reconhecer o regime de Pinochet como tal. Um golpe contra um presidente que pertencia a uma espécie de regime político que era leal ao seu programa e a seu compromisso com seu povo, e que não buscou nunca em sua carreira um “escudo”, que não conhecia “omissões”, nem funcionava com “operadores” ou outras práticas do presente. Será um setembro também de contrastes.
Como dizíamos no início, se nós chilenos nos envolvemos em nossas eleições, isso não detém o funcionamento do mundo exterior e aí existem algumas pinceladas finais.
O mais imediato é a sentença de Haia, a princípio para os próximos dias, alguns falam de setembro. Caso se confirmar o último, assinalaria apenas uma coisa óbvia: que os juízes requerem mais tempo, a pergunta é por quê.
Mas também esses dias permitiram despir algumas questões. O vergonhoso incidente do avião presidencial boliviano na Europa demonstrou uma sensível divisão da Unasul: os países da Aliança do Pacífico mostraram pouco interesse, seus mandatários não compareceram à reunião em Cochabamba. A começar pelo presidente Humala, que é atualmente o presidente pro tempore da Unasul. Até hoje, pelo menos no Chile, esta Aliança havia sido apresentada como um mecanismo de coordenação econômica e comercial, no entanto, em outras capitais se reconhece com mais transparência que se trata de “equilibrar o Mercosul”. A sombra de “fronteiras ideológicas” paira sobe a América do Sul.
E um dado menor: a desaceleração das economias asiáticas, especialmente do dragão chinês, afeta não apenas o Chile. Na América do Sul, Brasil, Argentina, Peru e Venezuela são ativos sócios comerciais dos asiáticos, e uma diminuição desse intercâmbio afetará também suas economias. Acontece que são os países nos quais se concentra boa parte do nosso comércio exterior, a maior parte dos nossos investimentos e especialmente de nossas exportações manufatureiras. Novamente, diminuição de recursos. Frente a este panorama, o governo, em seu afã anti-Michelle, a começar pelo ministro da Fazenda, culpa as propostas programáticas da oposição pelos perigos da nossa economia.
A economia decaindo, a diminuição de recursos, o aumento de expectativas, a direita se preparando pra se entrincheirar no Congresso, o movimento social latente, mostram um panorama onde a oposição não apenas terá de ganhar as eleições, mas, também, criar condições para uma efetiva governabilidade.
(*) Gabriel Gaspar foi embaixador chileno em Cuba e na Colômbia. É formado em Direito na Universidad de Chile e possui doutorado em Estudos Latino-americanos pela Universidad Autónoma de México.
Traduzido por Kelly Cristina Spinelli