Edgar Allan Poe é autor de um melancólico e soturno poema em que o narrador-personagem, recém viúvo, entabula uma conversa com um corvo falante. Mas o pássaro aprendeu apenas uma frase: “nunca mais”. Assim que percebe que o novo amigo sabe dizer apenas a mesma frase, “nunca mais”, o narrador-personagem passa a formular as perguntas para as quais deseja receber sempre a mesma resposta, “nunca mais”. O corvo é considerado um mensageiro do mundo dos mortos, animal inteligente e portador de maus presságios. Curiosamente, ao invés de ser tomado pelo medo e pela angústia, o narrador racionalmente se aproveita da situação para aprofundar, através do imaginário diálogo, sua solidão.
Com a aproximação dos 60 anos do golpe militar, o “nunca mais” volta à cena. Ditadura nunca mais. 8 de janeiro nunca mais. A seguir usando as palavras do corvo amigo apenas como um viés de confirmação para o que pensamos, em breve estaremos repetindo em eleições: “Bolsonaro nunca mais”.
Peço licença aos familiares de mortos e desaparecidos políticos da ditadura, assim como àqueles que foram torturados durante o período, para tratar do assunto sem mencioná-los. Até aqui, não há nada de novo. Em que pese os avanços no Brasil sobre as políticas de Memória, Verdade, e Justiça, o tema sempre foi tratado dentro da alçada da “turma dos direitos humanos”, um tema menor. Na realidade, a questão não é a punição de quem praticou crimes durante a ditadura, tema que o Supremo já deliberou por não rever, mas o controle sobre o aparato de violência do Estado, as Forças Armadas, ontem e hoje. Um tema, portanto, sobre o coração do poder.
Países cujas saídas das ditaduras deram-se por implosão das mesmas, como a Argentina e Portugal, com sólidas políticas de memória, com generais julgados e condenados pelos crimes cometidos, entre outras medidas, sentem atualmente o bafo do autoritarismo militar, que flerta com o neofascismo, em seus cangotes. A verdade é que, como Leminski, “a gente gostaria de ver os nossos problemas resolvidos por decreto. (…) Mas problemas não se resolvem, problemas têm família grande, e aos domingos saem todos para passear, o problema, sua senhora, e outros pequenos probleminhas”.
E o problemão da família grande, nesse caso, é o controle popular sobre os instrumentos (humanos e materiais) de violência do Estado. Poderíamos dar muitos exemplos do problema na atualidade, já que as declarações de homens estrelados povoam as capas dos jornais e as filas das barbearias. Mas optamos por tratar de dois documentos atualmente em discussão: a política nacional de defesa e a estratégia nacional de defesa, ambos formulados no governo Lula 3. Temperados com um leve toque verde-ambientalista que nos faz esquecer da responsabilidade do senador Mourão que, até pouco tempo atrás, era responsável pelo Conselho da Amazônia, ou as operações fracassadas de enfrentamento ao garimpo coordenadas por militares, os documentos seguem sendo mais do mesmo. Noções dos anos 1930, como a do vazio demográfico amazônico que precisa ser integrado ao restante do país, seguem cristalinas. Noções dos anos 1960, como as diferentes dimensões do “poder nacional” que precisam ser combinadas em uma política de “segurança nacional” seguem ali, firmes e fortes. Noções dos anos 1990, como a correlação direta entre a base industrial de defesa e o desenvolvimento, persistem. A maioria delas sem sustentação teórica cabível, ao contrário; com fartos estudos críticos identificando suas lacunas. Aos analistas críticos à permanente política de defesa, ou à atual conformação das Forças Armadas, o governo respondeu com uma piada de mau gosto: mandem suas mensagens através da consulta popular online. No botão de enviar, é quase possível escutar a voz do general Braga Netto com a popular mensagem “ative o sininho e siga o canal”. Antes esse corvo da democracia brasileira estivesse resmungando “nunca mais”, pois seria um sinal de que mudanças foram tentadas, ainda que sem êxito.
Ao ler os documentos à luz das últimas declarações do presidente sobre os 60 anos do golpe, fica evidente que Lula adotou uma postura política distinta daquela do narrador-personagem. Diante do corvo, da caserna, o presidente não conseguiu jogar de maneira a obter aquilo que deseja. Tem medo do pássaro preto, capitula diante do possível anúncio lúgubre. Há quem pense que o amor, a esperança, sejam sentimentos fortes. Mas, no clima de Edgar Allan Poe, ganha poder o medo. Mas e se eles derem um golpe? E se não respeitarem as minhas ordens? E se sublevarem unidades? E se? O medo do real ou do imaginário pode não mover montanhas, mas consegue construir barragens para rios. A dificuldade do presidente em assumir o comando das Forças Armadas, adotando políticas de controle sobre o aparato de violência do Estado, é evidente. Sindicalista que é, está acostumado a negociar, e não a comandar estruturas hierárquicas. Mesmo numa conjuntura favorável, com o apoio de segmentos expressivos da população a políticas que reformem as Forças Armadas, e com a atuação forte do Judiciário sobre os criminosos do 8 de janeiro de 2023, Lula não se moveu. Enquanto isso, a família de probleminhas vai crescendo. Não nos espantemos quando, durante o seu passeio de domingo, eles vierem atrapalhar a ressaca da festa da posse. Melhor escutar o corvo “nunca mais” do que a gralha “de novo”.
(*) Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.