Sexta-feira, 16 de maio de 2025
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O Haiti novamente se fez presente no noticiário internacional. E, como de hábito, não tardará a desaparecer, logo que estiver reforçada a imagem de um lugar caótico por sua própria natureza. Tal imaginário hobbesiano é difundido não apenas pela grande imprensa e seus especialistas de plantão, mas até por estudiosos sérios do país caribenho. Nesta visão hegemônica, os haitianos e haitianas estariam em um estágio primitivo de desenvolvimento humano, presos a um Estado de Natureza pré-contrato social. “Trata-se da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à própria sorte, sem nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos”[1].

O preconceito embutido neste imaginário é nítido. Trata-se do velho modo eurocêntrico de pensar, que atribui a determinados seres – racialmente determinados – qualidades inferiores às de outros. O próprio Hobbes, no Leviatã, já citava os “povos selvagens de vários lugares da América” como raros exemplos, supostamente empíricos, deste modo de vida “solitária, pobre, embrutecida e curta”[2]. É triste que até hoje sigamos reproduzindo tais narrativas sobre o Haiti. Pois, como bem lembrava o grande intelectual haitiano Michel Roulph Trouillot, tratar o seu país como um local anormal ou ‘esquisito’, no qual uma crônica incapacidade para o autogoverno seria a tônica, não passa de uma estratégia de poder[3].

Em primeiro lugar, porque ofusca a realidade: enquanto fazem-nos crer que os haitianos estão se matando uns aos outros sem parar (e sem motivo algum para além de sua natureza bárbara) esconde-se a realidade das lutas sociais que explicam, como em qualquer outra parte do mundo, aquilo que acontece no Haiti. Por conta disso, qualquer tentativa de politizar as explicações sobre a realidade haitiana deve ser rechaçada como ideológica – quando, na verdade, é este imaginário racista e colonial que representa o auge da ideologia dominante sobre este caso, e muitos outros[4].

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Em segundo lugar, como bem nos lembra o sociólogo haitiano Franck Seguy, o problema do Haiti nunca foi a falta de um Estado nacional forte. Ao contrário, se o Estado é um mecanismo de dominação social, então o Estado moderno é um sucesso no Haiti![5] E não apenas lá, mas em todas as partes onde a exploração capitalista seja a norma. Especialmente quando entende-se a exigência de mais estado como equivalente a mais polícia. A exigência de mais Estado como solução para o Haiti, portanto, tende a reforçar as relações de poder existentes, que precisam de constantes incrementos nas forças repressivas a fim de conter as explosões sociais resultantes da desigualdade econômica gritante.

Assim, é possível entender a obsessão da ‘comunidade internacional’ com as constantes intervenções militares sobre aquela metade de ilha nas Antilhas. Se o problema do Haiti é simplesmente a anarquia provocada por ‘gangues’ aleatórias que lutam entre si, logo só pode haver uma panaceia para todos os males haitianos: mais tropas, blindados, soldados, polícias – o que estiver disponível, de quem estiver disponível para enviar – para restaurar a ordem (social? econômica? política?) no Haiti. Antes foi o Brasil; hoje pode ser o Quênia. Mas quem paga são sempre os mesmos: Estados Unidos, França e Canadá.

como bem nos lembra o sociólogo haitiano Franck Seguy, o problema do Haiti nunca foi a falta de um Estado nacional forte.
(Foto: Caribb / Flickr)

Uma possível maneira de evitar o imaginário hobbesiano, por um lado, e suas consequências intervencionistas, por outro, é escutar as vozes dos movimentos sociais, sindicatos e organizações de esquerda daquele país. Em uníssono, elas se opõem a uma nova intervenção. Tanto as gangues, como as forças ocupantes, nesta visão contra-hegemônica, existem para garantir os interesses econômicos e os privilégios de uma minoria dentro do Haiti, que possui fortes conexões internacionais. Ademais, exigem a saída do Brasil do ‘Core Group’ que controla imperialmente os destinos políticos haitianos há tempos. 

Uma reivindicação que podia ser assumida pelos movimentos brasileiros também. Afinal, a reparação histórica precisa começar de imediato e a desvinculação do grupo responsável pelo caos fabricado no Haiti é a melhor forma de iniciar o pedido de desculpas que o Brasil deve àquele país tão importante para a história da liberdade, em todo o mundo, e tão relevante para a nossa história brasileira, em particular. 

Quem sabe, neste momento, ao menos nos jornais brasileiros, o Haiti deixe de ser uma manchete ocasional no noticiário internacional.

(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.


Notas:
[1]  Ver: Seitenfus, R. (2006) “Elementos para uma diplomacia solidária: a crise haitiana e os desafios da ordem internacional contemporânea”. Carta Internacional, v.1, n.1, p.7 (grifo nosso). Deve-se ressaltar, é verdade, que o mesmo autor inverteu sua posição em obras posteriores, nas quais tornou-se um grande crítico das intervenções sobre o Haiti. 
[2]  Ver: Hobbes, T. (2012) Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, p. 105-106.
[3]  Ver: Trouillot, M.R. “O Estranho e o ordinário: o Haiti, o Caribe e o Mundo”. Vibrant, n.17, pp. 1-8.
[4]  Sobre os temas substantivos da política haitiana contemporânea, a posição do autor destas linhas pode ser encontrada em: Borba de Sá (2023) “Haití Lejos de los Titulares Ocasionales: uma mirada a la política haitiana más allá del imaginário eurocêntrico”. In: Linera, G. et al (orgs.). História Contemporánea de América Latina y el Caribe. México-DF: AKAL.
[5]  Ver: Seguy, F. A catástrofe de janeiro de 2010, a “Internacional Comunitária” e a recolonização do Haiti. Campinas, 2014, 398p. Tese de Doutorado – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Orientador: Ricardo Antunes.