O Haiti novamente se fez presente no noticiário internacional. E, como de hábito, não tardará a desaparecer, logo que estiver reforçada a imagem de um lugar caótico por sua própria natureza. Tal imaginário hobbesiano é difundido não apenas pela grande imprensa e seus especialistas de plantão, mas até por estudiosos sérios do país caribenho. Nesta visão hegemônica, os haitianos e haitianas estariam em um estágio primitivo de desenvolvimento humano, presos a um Estado de Natureza pré-contrato social. “Trata-se da simples ausência de Estado. Da convivência desregrada entre seres humanos abandonados à própria sorte, sem nenhuma possibilidade de salvação individual, diante da perspectiva de guerra eterna de todos contra todos”[1].
O preconceito embutido neste imaginário é nítido. Trata-se do velho modo eurocêntrico de pensar, que atribui a determinados seres – racialmente determinados – qualidades inferiores às de outros. O próprio Hobbes, no Leviatã, já citava os “povos selvagens de vários lugares da América” como raros exemplos, supostamente empíricos, deste modo de vida “solitária, pobre, embrutecida e curta”[2]. É triste que até hoje sigamos reproduzindo tais narrativas sobre o Haiti. Pois, como bem lembrava o grande intelectual haitiano Michel Roulph Trouillot, tratar o seu país como um local anormal ou ‘esquisito’, no qual uma crônica incapacidade para o autogoverno seria a tônica, não passa de uma estratégia de poder[3].
Em primeiro lugar, porque ofusca a realidade: enquanto fazem-nos crer que os haitianos estão se matando uns aos outros sem parar (e sem motivo algum para além de sua natureza bárbara) esconde-se a realidade das lutas sociais que explicam, como em qualquer outra parte do mundo, aquilo que acontece no Haiti. Por conta disso, qualquer tentativa de politizar as explicações sobre a realidade haitiana deve ser rechaçada como ideológica – quando, na verdade, é este imaginário racista e colonial que representa o auge da ideologia dominante sobre este caso, e muitos outros[4].
Em segundo lugar, como bem nos lembra o sociólogo haitiano Franck Seguy, o problema do Haiti nunca foi a falta de um Estado nacional forte. Ao contrário, se o Estado é um mecanismo de dominação social, então o Estado moderno é um sucesso no Haiti![5] E não apenas lá, mas em todas as partes onde a exploração capitalista seja a norma. Especialmente quando entende-se a exigência de mais estado como equivalente a mais polícia. A exigência de mais Estado como solução para o Haiti, portanto, tende a reforçar as relações de poder existentes, que precisam de constantes incrementos nas forças repressivas a fim de conter as explosões sociais resultantes da desigualdade econômica gritante.
Assim, é possível entender a obsessão da ‘comunidade internacional’ com as constantes intervenções militares sobre aquela metade de ilha nas Antilhas. Se o problema do Haiti é simplesmente a anarquia provocada por ‘gangues’ aleatórias que lutam entre si, logo só pode haver uma panaceia para todos os males haitianos: mais tropas, blindados, soldados, polícias – o que estiver disponível, de quem estiver disponível para enviar – para restaurar a ordem (social? econômica? política?) no Haiti. Antes foi o Brasil; hoje pode ser o Quênia. Mas quem paga são sempre os mesmos: Estados Unidos, França e Canadá.
Uma possível maneira de evitar o imaginário hobbesiano, por um lado, e suas consequências intervencionistas, por outro, é escutar as vozes dos movimentos sociais, sindicatos e organizações de esquerda daquele país. Em uníssono, elas se opõem a uma nova intervenção. Tanto as gangues, como as forças ocupantes, nesta visão contra-hegemônica, existem para garantir os interesses econômicos e os privilégios de uma minoria dentro do Haiti, que possui fortes conexões internacionais. Ademais, exigem a saída do Brasil do ‘Core Group’ que controla imperialmente os destinos políticos haitianos há tempos.
Uma reivindicação que podia ser assumida pelos movimentos brasileiros também. Afinal, a reparação histórica precisa começar de imediato e a desvinculação do grupo responsável pelo caos fabricado no Haiti é a melhor forma de iniciar o pedido de desculpas que o Brasil deve àquele país tão importante para a história da liberdade, em todo o mundo, e tão relevante para a nossa história brasileira, em particular.
Quem sabe, neste momento, ao menos nos jornais brasileiros, o Haiti deixe de ser uma manchete ocasional no noticiário internacional.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.