De Noam Chomsky a John Mearsheimer, todos sabiam que o avanço da OTAN sobre a Ucrânia, que aconteceu em 2022, cruzaria uma linha vermelha inadmissível para Moscou. Assim os russos perderiam o controle estratégico do mar Negro, o seu precioso acesso às águas quentes do Mediterrâneo e seriam alijados de sua de projeção naval para Europa e Oriente Médio, que garante a manutenção do seu vasto território.
O conflito iniciado há dois anos, portanto, não foi um engano do presidente americano Joe Biden, nem um sonho romântico sobre democracia no Leste. Se você acredita nisso, acreditará em qualquer coisa, como diria o Arthur Wellesley, o primeiro Duque de Wellington. A questão é que Biden acreditou em qualquer coisa, ao supor que aniquilaria rapidamente seu homólogo russo e nêmesis, Vladimir Putin.
E à sombra dessa estratégia, não só o Pentágono acionou sua vasta rede de guerra híbrida, capaz de direcionar manchetes da imprensa livre e “profissional”, como, ainda, teve o apoio de uma ampla coalizão de bem-intencionados liberais e social-democratas, cada vez mais amalgamados. Só que tudo deu errado por ora, pois nem Putin caiu, nem as centenas de bilhões de dólares investidos deram o retorno esperado à economia americana.
Viradas discursivas
Hoje, estamos testemunhando a recalibragem dessa mega-narrativa, com os discursos que diziam que a Rússia seria arrasada [crushed] sendo trocados por editoriais que falam em uma resiliência “inimaginável” da economia russa – repetindo as mesmas palavras de Biden e da máquina democrata, quase com um tom de condescendência do tipo “nunca seria possível de imaginar o que aconteceria depois, não se culpe”.
Como era óbvio, uma parte desse discurso passa por repetir os velhos estereótipos sobre os russos, sendo que uma parte dela incluía a enésima repetição do mito do guru de Putin. De um lado, o presidente russo é representado como um gênio do mal, uma reencarnação de Fu Manchu – o estereotipado protótipo dos vilões contemporâneos –, enquanto, por outro, ele é tido como um débil que demanda um guru, o qual é encarnado pelo filósofo Alexandr Dugin.
A Revista Piauí, quintessência brasileira do que se convencionou chamar de “neoliberalismo progressista”, publicou um longo e maçante artigo nessa direção, no qual a cada esquina surge um “guru de Putin”. Mas ela não consegue apontar uma só ocasião onde a palavra do referido filósofo determinou, concretamente, a tomada de decisões de Moscou nesta crise ou na história recente.
É claro, isso pode ser simplesmente “desinformação russa”, voluntária ou involuntária da minha parte, mas é preciso notar que a primeira obra de relevo de Dugin, Fundamentos da geopolítica (1997), traz especulações altamente abstratas sobre o expansionismo russo, ironicamente no momento de maior fraqueza do país; dentre elas, a defesa expressa de que a Rússia atuasse contra a China, para lhe tomar a Manchúria e o Xinjiang (!).
Empossado presidente três anos depois do lançamento desse livro, Vladimir Putin fez exatamente o inverso na questão chinesa. Firmou o Tratado de Cooperação e Amizade em 2001, finalmente resolveu a catastrófica questão fronteiriça entre os dois países, fez treinamentos militares conjuntos e depois partiu para o abraço em instâncias como a Organização de Cooperação de Xangai, G-20 e BRICS.
Dugin, em seu Teoria do mundo multipolar de 2012, chega a dizer coisas como “O fortalecimento da China é benéfico para a Rússia” – esqueça Xinjiang ou pare de querer cruzar o rio Amur, viva o BRICS! O que teria mudado em quinze anos? Basicamente, foram os caminhos que a liderança russa determinou e as novas variáveis colocadas na mesa. Nenhuma delas foi projetada por Dugin.
Putin, o guru de Dugin
Certamente, a Rússia se viciou na morfina que lhe ajudou a se recuperar da quebra dos anos 1980-1990, isto é, a centralidade do comércio de gás natural e petróleo com a Europa. Isso representou uma solução de curto prazo, com o ingresso rápido e fácil de muito dinheiro, mas serviu também como um fator de estagnação para a indústria do país; foi uma âncora, amarrando russos aos europeus e tornando lento seu movimento necessário rumo à China.
Putin ousou na estratégia chinesa, mas só depois da OTAN ter cruzado o Rubicão é que finalmente se tomou o impulso para o giro. Nada disso veio da cabeça de Dugin, embora Sergey Karaganov, um eurasiano moderado e diretor do think tank Conselho de Defesa e Política Externa, certamente tenha formulado ideias que se tornaram política efetiva.
Dugin, ora reemergindo, como agora, ora sendo demitido do seu departamento na Universidade de Moscou, é uma figura do debate público russo em seu nicho. Supor Dugin como uma espécie de cardeal Richelieu pós-moderno interessa só à narrativa caricatural de neoliberais globais – e, ironicamente, ao próprio Dugin e seus círculos de apoiadores, sobretudo na Itália, Turquia e Brasil, que de fato o têm como guru.
Já a guerra que completa aniversário pode ter passado longe do desfile de tanques que Putin esperava – e supunha ser suficiente para implodir o governo do seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky. A verdade é que Moscou tinha meios para contornar as sanções, assim como disposição e liderança para arcar com os custos de curtíssimo prazo e avançar, embora tudo isso esteja umbilicalmente ligado pela estratégia chinesa de Putin que remonta a 2001.
Nada disso passou pelo cálculo de Washington, cujos estrategistas ou erraram feio ao supor um colapso econômico russo em 2022 ou, talvez, só estavam blefando para induzir Moscou ao erro. Os ganhos da guerra para os americanos foram, em grande medida, engolidos pela inflação global, que obriga o Federal Reserve, o banco central americano, a praticar altas taxas de juros, reduzindo o crescimento local.
Ironicamente, ao colocar Putin em uma guerra que ele relutava a lutar desde 2014, mesmo sob pressões nacionalistas, os democratas podem ter dado uma deixa perigosa tanto para a Rússia quanto para o Sul Global. Mas isso só foi possível de se fazer, concretamente, porque havia uma economia chinesa bem-sucedida, coisa que Dugin certamente não anteviu nos anos 1990, e disposta a ampliar a integração com os russos.
A Rússia crescendo mais do que a Alemanha ou os Estados Unidos é sim uma derrota tática, imensa, da estratégia de Biden – e pode se tornar uma grande derrota estratégica, sobretudo se os democratas continuarem a acreditar na própria narrativa. Hoje, o tema se tornou uma grande questão de política interna nos Estados Unidos, às portas de uma nova eleição presidencial.
(*) Hugo Albuquerque é jurista e editor da Autonomia Literária.