Desde o advento do processo de libertação nacional do mundo Ásio-Africano (também conhecido como “descolonização”), ocorrido entre os anos 40 e 70 do século passado, o sistema internacional passou por uma radical transformação. O historiador René Remond assim definiu tal situação:
“Se quiséssemos reduzir a história política do mundo nos dois últimos séculos a alguns elementos constitutivos, teríamos de assinalar a Revolução de 1789, a revolução russa de 1917 e a emancipação dos continentes sujeitos, há vários séculos, ao domínio da Europa e do homem branco. Foi a sucessão desses três grandes fatos que modelou a fisionomia do mundo contemporâneo: nosso universo resulta essencialmente dessas três forças sucessivas.”[1]
A independência nacional não foi, no entanto, auto-definidora, ou seja, ela não foi totalmente completa. Apesar de, numa perspectiva realista, terem sido consituídos mais de cem novos Estados Nacionais soberanos, restou intacto um poder externo intervencionista inequivocamente possuidor de um viés colonial, agora sem a posse de territórios coloniais. Colônias libertadas passaram a se relacionar com as antigas metrópoles, e com todo o contexto internacional tensionado pela Guerra Fria, de forma precária (dada a ausência/fragilidade de políticas públicas e limitações à inserção na economia internacional), tornando-se não raramente vítimas de renovadas formas de interferência dos antigos dominadores.
Um dado novo a ser considerado: agora o intervencionismo contava com ampla participação dos Estados Unidos da América. Este fator foi amplamente denunciado por governantes dos países recém libertados, percebendo que a dominação total foi substituída por uma dominação basicamente (mas não exclusivamente) econômica. Era o Neocolonialismo.
Após o primeiro grande ciclo de independências ocorridas na Ásia (Índia, Filipinas, Indonésia, Coreia, e até a Revolução Chinesa, tida como uma revolução nacional e anti-imperialista) a África adentra neste processo nos anos 50 (com o início da Guerra da Argélia) e, principalmente, nos 60. O continente africano – que vivenciou concomitantemente o fim do processo colonial “clássico” e o início do seu sucedâneo (neolocolonialismo) –, ensejou um debate mais aprofundado sobre a natureza desta novíssima manifestação do poder desigualmente distribuído entre Estados Nacionais juridicamente iguais.
Em Gana, o primeiro país africano livre da dominação colonial, em 1957, sob a liderança do presidente Kwame Nkrumah, foi implementado um processo de industrialização soberano pautado na obtenção de divisas alcançadas com a venda de produtos agrícolas locais: o algodão e o amendoim. Ali ocorreu um dos primeiros experimentos de derrubada de governantes pelas antigas forças coloniais mais um novo tipo de imperialismo desenvolvido pelos EUA. Este país forneceu o modelo acabado da nova relação Neocolonial, que foi definido lapidarmente por Raymond Aaron[2] – se bem que com uma outra perspectiva, a apologia da política externa norte-americana se comparada com a soviética –, como sendo uma “república imperial”. Nesta ficam armazenados os elementos que asseguram a soberania dos novos países funcionando dentro de um enquadramento e submissão típico de instituições estatais do tipo dos impérios.
Em 1957 o presidente ganês foi derrubado em meio a uma crise no mercado de commodities artificialmente produzida nas bolsas de mercadorias dos países desenvolvidos. Internamente, forças políticas afins a este projeto transformaram a crise numa nova/antiga forma de governança; agora o alinhamento com os antigos colonizadores gerando, em nome da Guerra Fria, políticas públicas de favorecimento exclusivo do mercado mundial capitalista, mas não do mercado interno. Destacamos aqui, acrescentando ao quadro de intervencionismo do novo imperialismo pós-descolonização as deposições do poder dos primeiros-ministros Mohammed Mossadegh, do Irã (em 1952) e Patrice Lumumba, do Congo (em 1961). Estes, e outros, tinham como perspectiva criar uma economia nacional forte, industrializada a partir de vastos recursos naturais existentes em seu território; tal viés foi denominado neste período como sendo “desenvolvimento”, que foi capaz de ensejar uma complexa reflexão teórica e ação política de governos tidos como “nacionalistas”. Agora a guia orientadora era se contrapor ao “sub-desenvolvimento”.
No mundo ásio-africano, junto com a América Latina (esta independente há mais um século, mas que adentrou neste universo com os países dos demais continentes), formou-se uma fórmula pétrea de conduta da relação soberania nacional (das antigas colônias) + limitações deste status, viabilizado por vários caminhos: a) a permanência da dominação direta dos antigos colonos sobre políticas públicas cruciais ou regiões possuidoras de riquezas minerais dos novos países; b) controle indireto do mercado de negociação dos produtos (agrícolas ou de extração) exportados pelos novos governos; c) tomada do poder via golpes de Estado e/ou corrupção do processo eleitoral favorecendo aliados dos países desenvolvidos; e, d) invasões militares de tropas das antigas metrópoles por tempo curto ou indeterminado quando alguma crise mais grave sobrevinha nas áreas tornadas independentes.
São inúmeros os casos no “triplo A” (Ásia, América, África) de intervenção norte-americana ou europeia em momentos cruciais da vida política dos Estados Nacionais submetidos ao que, por exemplo, a Teoria da Dependência chamou de “periferia”. São tantos os exemplos, todos dramáticos para a vida dos afetados pela interferência estrangeira, que um meme circula nas redes sociais indicando que não existe um ano sequer desde o início da descolonização sem que tenha havido uma invasão ou agressão militar dos EUA (principalmente) ou de algum país europeu.
Sendo assim, a História política do que dos anos 50 aos 70 foi chamado de “Terceiro Mundo” é marcada por uma luta heróica dos povos libertados da dominação espoliativa do capitalismo por uma espécie de confirmação sem fim do que já havia sido determinado com a saída formal dos colonizadores europeus.
Este problema foi claramente detectado por Kwame Nkruma em seu trabalho referencial[3], cujo título é uma paráfrase do clássico trabalho de Lênin (“Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo”), escrito após a sua derrubada do poder por um golpe patrocinado pelo novo bloco de interesses neo-colonialista. Neste trabalho o autor teoriza e descreve vários aspectos da dominação neo-colonial.
“A essência do neocolonialismo é que o Estado que está sujeito a ele é, em teoria, independente e tem todas as armadilhas externas da soberania internacional. Na realidade, o seu sistema econômico e, portanto, a sua política política são diretos do exterior.”[4]
Para uma análise do papel da França na África sob a clave do Neocolonialismo (que trataremos no artigo posterior) procuraremos identificar: a) as causas da manutenção do poder colonial francês após a independência formal e, b) a crise atual deste poder e quais as possíveis implicações para o sistema internacional.
(*) Bernardo Kocher é Professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense