A duas semanas do primeiro turno das eleições presidenciais francesas, as pesquisas indicam um empate técnico entre Marine Le Pen, da Frente Nacional, de extrema direita, e Emmanuel Macron, do En Marche!, um “sem partido” de centro e ex-ministro da Economia do governo do socialista François Hollande. Estariam, cada um, com cerca de 23,5%. O republicano conservador François Fillon, católico tradicional, conservador e ultraliberal no plano econômico, vem em terceiro (19%), empatado com Jean-Luc Mélenchon, de A França insubmissa. Se este último juntasse suas intenções de voto às do outro candidato de esquerda, Benoît Hamon, do Partido Socialista, atingiria inacreditáveis 28 pontos, saindo em primeiríssimo lugar no páreo rumo ao Palácio do Eliseu.
Mas se a esquerda continua como sempre dividida, em compensação a direita também sofreu um sério revés. Fillon, que saíra como o grande vitorioso das prévias da centro-direita do PR, nas quais Nicolas Sarkosy amargou um vexaminoso terceiro lugar, em disputado escrutínio mobilizando 4 milhões de franceses, responde na Justiça pelas acusações de ter criado empregos fictícios para a mulher e filhos, além de receber de um “amigo generoso”, ternos da ordem de algumas dezenas de milhares de euros. O ex-primeiro-ministro de 62 anos, que bateu com folga o também ex-primeiro-ministro Alain Juppé, abocanhando 67%, contra 32% de seu adversário, insistiu na sua candidatura, apesar da promessa de renunciar, caso fosse chamado a depor em torno do escândalo que abalou as bases do PR. Sua decisão de permanecer na corrida apoiou-se, é claro, nas declarações de Juppé. O segundo colocado, para quem os olhares voltaram-se no dia seguinte à eclosão do “affair” incriminatório, em busca de uma substituição salvadora de emergência, disse que, para ele, era muito tarde. “Eu não encarno a renovação desejada pelos franceses”. Juppé, assim como seus correligionários, ao lado dos sarkosistas e dos mairistas – ligados a Bruno Le Maire, antigo ministro da Agricultura e candidato também derrotado nas primárias da direita -, apressaram-se a abandonar o barco avariado da campanha, que navega rumo a um naufrágio previsível.
Os 11 cavaleiros
Diante do quadro de incertezas no país, que enfrenta uma alta taxa de desemprego, atingindo mais de 3,5 milhões de pessoas, taxa de crescimento 1,1% ao ano, crise dos refugiados, uma União Europeia enfraquecida pelo Brexit e a ameaça terrorista que assombra a população e afugenta os turistas, o próximo presidente terá, pela frente, um trabalho digno de Hércules. Não por acaso, o segundo debate presidencial da terça-feira, 4 de abril, nos canais CNews e BFMTV, atraiu um número recorde de telespectadores, dentre os quais registra-se um terço de indecisos. Pela primeira vez na história da V República, todos os candidatos tiveram a oportunidade de discutir, ao vivo, temas que giravam em torno da criação de empregos, de como proteger os franceses e como desenvolver o modelo social. Numa composição inédita, Macron, Fillon, Le Pen e Mélenchon foram chamados a dividir o ringue com Benoît Hamon – “traído” pelo companheiro Manuel Valls, que, derrotado nas primárias do PS, correu para Macron, a quem levou mais desconforto do que suporte efetivo. Usufruindo de igual tempo para expor as ideias, estavam os nanicos Jean Lassalle, Nathalie Arthaud, Jacques Cheminade, Nicolas Dupont-Aaignan, Philippe Poutou et François Asselineau.
O formato, reunindo 11 concorrentes, dentre os quais apenas 3 ou 4 detém alguma chance real de chegar ao pódio, revelou-se um exercício de democracia e de paciência. Teve o mérito de dar voz e vez aos menores, que emprestaram ao evento certo frescor, ao trazer à tona temas menos centrais e, portanto, raramente abordados pelos majoritários. Porém, tornou-se cansativo, na medida em que serviu de palco para os “pequenos” desferirem seus ataques quase às cegas e, com isso, prejudicando o aprofundamento de questões importantes e reveladoras das posições de cada um.
No geral, Macron falou de renovação e progresso. Marine, na recuperação dos valores e das tradições francesas contra os que os contestam. Fillon defendeu a guerra contra o terrorismo, com medidas para proteger população, e a necessidade de reinflar o orgulho dos franceses que, para ele, deveriam assumir o comando da União Europeia, transformando a nação na maior potência do continente. Foram Mélenchon e Benoît que evocaram a ecologia como pontos fortes dos seus programas. Para o primeiro, o sistema financeiro deveria arcar com os custos das medidas da energia renovável, rumo ao crescimento que erradicaria a miséria e o desemprego. Na opinião do segundo, a ecologia transforma o trabalho, contribuindo para mudar a atual sociedade narcisista, individualista e hipócrita, que atravessa uma grande crise política e moral. Poutou, do Partido anticapitalista, falou em nome dos despossuídos, mas passou a noite afrontando os outros candidatos. Sem chances concretas de vencer, podia-se dar-se o luxo de expor os pensamentos sem medo de desagradar. Colocou o dedo no nariz de Fillon, acusando-o de corrupção direta e claramente, sem eufemismos. Sua melhor tirada, porém, ficou por conta da ironia contra Marine Le Pen. A candidata e presidente do FN, chamada a depor sob alegações de que teria usado recursos do Parlamento Europeu, o qual integra desde 2004, para pagar o staff do Partido, incluindo o próprio guarda-costas, faz uso do seu status de servidora pública para não comparecer perante o tribunal. “Nós, trabalhadores, não tempos esta opção, já que não gozamos de imunidade operária”, provocou. Como se não bastasse, foi o único a aparecer sem terno e gravata. Trajava uma camiseta branca de mangas compridas e, para reforçar seu perfil, dublê de outsider e enfant gaté, e fazendo pouco caso de Macron, que foi atrás dele no fundo do palco, recusou-se tirar a histórica foto conjunta ao final do programa: “Eles não são meus companheiros”, justificou.
Visivelmente abatido, mas apostando no voto “escondido” que apareceria na última hora entre os decepcionados, Fillon bateu na tecla da agenda de reforma neoliberal, combinada com o endurecimento da lei e da ordem, apoio à família tradicional e contra o “totalitarismo islâmico”. Neste ponto, ao menos, parece coincidir com Mélenchon que, em 2011, queria proibir os alto falantes nas mesquitas, assumindo-se contrário à política de imigração da União Europeia. Posição que Le Pen endossa, referindo-se às levas infindáveis de imigrantes muçulmanos e suas possíveis ligações com o terrorismo, enquanto defende o fechamento das fronteiras, a revisão do reagrupamento familiar e do “jus solis” – nacionalidade concedida automaticamente a qualquer cidadão nascido em solo francês.
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Agência Efe
No pós-debate, 10 dos 11 candidatos posam para foto. Da esq. para dir., Mélenchon, Fillon, Lassalle, Ouvriere, Arthaud, Le Pen, Hamon, Cheminade, Dupont-Aignan, Macron e Asselineau
Na contramão, Macron apoia a política de acolhida aos migrantes, a exemplo do que faz Angela Merkel na Alemanha. Sob seu ponto de vista, os imigrantes representam uma solução, e não um problema. E vai além, propondo a criação de uma Federação Nacional do Islã, reunindo as associações culturais existentes. No melhor espírito republicano de liberdade religiosa, diz que esta instituição poderia, inclusive, receber verbas para a construção de mesquitas. Com a sua imagem de moço comportado, daqueles que mamãe gostaria para genro, ele parece ter recuperado o bom senso e as rédeas do seu discurso. Ao contrário do primeiro debate, quando chegou a ser zombado sem piedade por Le Pen, pelas suas frases de efeito sem conteúdo, que ele repetia como um autômato, desta vez saiu-se como um dos que passaram maior credulidade. Ficou atrás apenas de Mélenchon, tido como imbatível, graças ao apurado senso de humor e, sobretudo, à sua inata capacidade de comunicação. Traço, este, repercutido nas redes sociais, que ele usa e abusa com inusitada eficiência, a ponto de ter ganho um troféu YouTube, após superar os 150.000 inscritos na sua conta no canal. Uma audiência que faz dele o personagem político mais seguido na plataforma vídeo na França.
Ambição a dois
Alguns analistas dizem que Emmanuel Macron e Marine Le Pen querem substituir a clivagem direita-esquerda por outra, que opõe conservadores e progressistas, patriotas e “mundialistas” – algo diferente de internacionalistas. Dona de um estilo em que procura falar diretamente ao povo francês “esquecido”, Le Pen evita o tema do “Frexit”, temerosa de afugentar os eleitores pequeno-burgueses, embora tenha taxado o Brexit de “maravilhoso”. Ela, que foi esnobada por Donald Trump e Angela Merkel, caiu nos braços de Vladimir Putin, que lhe deu a oportunidade de colocar um pezinho na cena internacional conforme vinha sonhando há tempos. Em troca, garantiu, em alto em bom som, não acreditar numa diplomacia de ameaças, boicotes e chantagens. Ponto para Moscou, de olho na suspensão das sanções econômicas impostas à Rússia pela União Europeia, em consequência do conflito ucraniano, e prolongada por seus 28 países membros, até 31 de julho deste ano. Putin jogou sua cartada, agora que Fillon está fora da disputa. Por isso, as palavras aduladoras de madame soaram como música aos ouvidos do Kremlin.
Em termos de cultura, pode parecer muito sutil, mas as diferenças na maneira como o assunto é tratado revela a ideologia por detrás dos slogans. Macron fala de uma “Cultura na França”, diversa e múltipla, segundo a própria composição populacional atual, em oposição à direita, que defende a “cultura francesa” contra os ataques estrangeiros. E como a exploração do passado, ou do patrimônio histórico, tornou-se uma das principais fontes de riqueza do capitalismo ocidental, a revitalização dos vilarejos hoje relegados ao abandono, tornou-se consenso entre os candidatos. Em todo o arco ideológico pululam propostas visando preservar a “identidade francesa”, seja por meio de investimentos públicos, seja por loterias ou “mecenato popular-participativo”, com de donativos individuais online, proposto por Le Pen e Fillon.
De resto, pode-se afirmar que, se as receitas variam, a retomada do crescimento econômico sobressai como unanimidade entre onze dos onze aspirantes ao Palácio do Eliseu. Fillon propõe uma diminuição dos encargos das empresas, combinada a uma reforma do ensino profissional, incluindo parcerias público-privadas, para lutar contra o desemprego entre os jovens. Abandonado pela ala direita do seu partido de esquerda, e com o pesado fardo de defender o governo moribundo de Hollande, Hamon diz não acreditar no mito do crescimento, tido como a prioridade número um por Le Pen, mas tanta introduzir o tema da renda básica universal para abrir as perspectivas políticas, defendendo um progresso “ecológico”. Termo, este, também presente nas perspectivas de Macron, num modelo que cruza transição ecológica, indústria do futuro e agricultura do amanhã. Tem planos de investimentos na ordem dos 50 milhões de euros, uma reforma fiscal do capital e redução das despesas públicas. Já Mélenchon, contrário à política de austeridade instituída a partir de 2007, promete relançar 100 milhões de euros financiados por empréstimo e outros tantos por meio de novos investimentos.
Favorito em todos os cenários, no primeiro e segundo turno, Emmanuel Macron, de 39 anos, é definido por alguns observadores como social-liberal ou social democrata, favorável ao restabelecimento do equilíbrio das finanças públicas, e do livre mercado, nos moldes de Clinton, Blair e Schröder, quando aqueles representavam a terceira via. Economista e banqueiro, cujo principal atrativo parece consistir no fato de ser jovem, livre do sistema de partidos e de ideologias, eficiente e pragmático, tem uma carta na manga. Ela chama-se Brigitte. Assinava Trogneux, antes de conhecer, apaixonar-se e casar com seu ex-aluno de francês, 24 anos mais jovem do que ela. Avessa às entrevistas, tem um papel nos bastidores que não escapa à imprensa. Prova disso são as inúmeras capas de revistas que estampam sua figura longilínea ao lado do marido, com quem forma um par que remete ao casal Obama. Ao mesmo tempo discreta e onipresente, capta e passa mensagens, organiza encontros e serve como olhos e ouvidos do marido. E se alguém ainda duvida de que, para além de primeira dama, ela desempenhará um papel político central, basta lembrar as suas próprias palavras, a título de brincadeira, a um semanário francês: “Ele precisa ganhar agora. Já pensou a cara que eu terei daqui a cinco anos?” Ela quer vencer, e quer vencer já.
(*) Jornalista com pós-doutorado em história pela USP, autora de “Entre a vanguarda e a tradição” (Alameda) e mais 26 livros, mora em Paris e colabora com artigos para a imprensa brasileira