Se os jornais não servem para orientar o público nos momentos críticos, qual será então a sua utilidade social? Essa pergunta me acompanhou no meu primeiro passeio pelo centro de Atenas, na noite de segunda-feira, 5 de janeiro. Na Praça Sintagma, em frente ao Parlamento, policiais se protegiam da chuva debaixo de um toldo enquanto vigiavam a árvore de Natal montada pelo governo grego. O insólito esquema de segurança visava a impedir que manifestantes incendiassem novamente o enfeite natalino, como fizeram em dezembro, no auge dos protestos contra o assassinato do adolescente Alexandros Grigoropoulos, de 15 anos, baleado por um policial.
A imagem do pinheiro em chamas circulou o mundo pela internet como o cartão de “boas festas” perfeito para expressar as tensões deste 2009 que já começa, na definição do jornalista econômico Chris Cook, em texto no Financial Times, como “um ano a ser esquecido”. Para os especialistas do mercado financeiro citados pelo Le Monde na ultima edição de 2008, a economia mundial ainda não chegou ao “fundo do poço” e os balanços das empresas nos próximos meses serão piores do que se espera. Como se a sombra da crise não fosse suficiente, o ano se inaugura ainda sob o signo da violência, cuja marca mais chocante é a brutal agressão israelense na Faixa de Gaza.
Um olhar abrangente sobre o comportamento da imprensa na atual conjuntura mundial traz à tona uma fria constatação. Do ponto de vista dos interesses da mídia européia e estadunidense, a invasão de Gaza até veio a calhar, na medida em que permite disfarçar sua paralisia e perplexidade diante da recessão. Já bem antes que os preparativos da ação israelense viessem a público, podia-se notar o esforço em tratar os desdobramentos da crise como fatos rotineiros. Em cada país, as atenções midiáticas nas últimas semanas de 2008 estiveram voltadas para as respectivas agendas domésticas, deixando a crise em segundo plano.
O espinhoso tema econômico se manteve, é claro, no noticiário, mas dominado por uma abordagem asséptica em que as novidades se reduzem a duas categorias básicas. De um lado, os efeitos concretos da crise, apresentados em geral na forma de uma monótona sucessão de demissões, falências, queda de lucros e cortes de investimentos. Do lado oposto, pacotes e mais pacotes de “estímulo governamental” à recuperação econômica, até agora sem resultado algum.
A mídia põe em marcha, dessa forma, um mecanismo de banalização da crise cujo efeito é ocultar a dimensão sistêmica de uma catástrofe consensualmente apontada como “a pior desde 1929”. Ora, se o quadro é tão sombrio quanto pintam, essa gravidade deveria merecer o devido realce, certo? Não é o que acontece. Nos principais jornais, as prioridades editoriais, expressas na primeira página, sugerem que “o pior já passou”. Em contraste, nas seções de economia dessas mesmas publicações, textos mais aprofundados revelam, a cada dia, um cenário que ultrapassa as previsões mais pessimistas.
No primeiro dia do ano, o New York Times publicou, sem destaque, matéria do seu correspondente em Hong Kong, Keith Bradsher, sobre o panorama de terra arrasada nos centros industriais da China, justamente para onde se voltavam, até há pouco tempo, as expectativas de resgate da economia global. Na província de Guandong, locomotiva do modelo exportador chinês, são tantas – diz o NYT – as fábricas que fecharam recentemente sem pagar seus empregados que muitos trabalhadores, numa medida preventiva desesperada, estão pedindo demissão como meio de obter o pagamento do salário antes da falência dos seus patrões.
A reportagem mostra também o impasse entre os exportadores chineses e seus principais clientes, as redes de varejo dos EUA. Na China, os fabricantes relutam em despachar as mercadorias, receosos de que os compradores quebrem antes de pagar as faturas. Os varejistas estadunidenses, movidos pelo mesmo temor, mas em sentido inverso, exigem garantias crescentes para fechar os pedidos. Os bancos, desconfiados, seguram o crédito a uns e a outros. O que está em jogo, com a quebra generalizada da confiança, é a própria lógica da globalização, ameaçada pela ruptura dos laços comerciais e financeiros e pela escala do protecionismo, última trincheira de defesa dos espaços econômicos nacionais.
Como se pode explicar a postura de avestruz adotada pela mídia internacional diante de uma crise econômica de tal magnitude? Seria ridículo imaginar uma conspiração para, deliberadamente, enganar o público. Esse é, no entanto, o resultado a que se chega, mas a partir de mecanismos inerentes à atuação da imprensa empresarial em qualquer lugar do mundo. Num cenário de incerteza, nenhum publisher “responsável” se arrisca a ser acusado de apavorar seus leitores ou, pior ainda, telespectadores. Na dúvida, a opção automática, quase instintiva, é por manter a opinião publica num estado que pode ser chamado de “ignorância benigna”. Afinal, como seria possível cobrir jornalisticamente a crise, na plenitude das suas implicações e com a ênfase correspondente, sem gerar o tão temido “pânico”?
Na realidade, os empresários da mídia compartilham com os governantes a crença autoritária de que é necessário administrar cuidadosamente o impacto psicológico da crise. Esse raciocínio, válido para qualquer crise digna desse nome, ao ser colocado em prática no atual contexto, faz com que o cidadão – o suposto sujeito soberano nas democracias – seja infantilizado, reduzido à mera condição de consumidor, na expectativa de que permaneça como tal. Ou seja, de que continue consumindo.
Pouco importa se, nessa operação mental, o sacrossanto compromisso dos jornalistas com a verdade e com a honestidade intelectual (quem se lembra do “rabo preso com o leitor”?) vai para o altar dos sacrifícios. Em toda redução de consumo, vale lembrar, as primeiras vítimas são os anunciantes, detentores, estes sim, do poder de vida ou de morte sobre qualquer publicação comercial.
* Igor Fuser é jornalista, professor da Faculdade Cásper Líbero e do Centro Universitário Belas Artes e autor dos livros “México em Transe” e “Petróleo e Poder – O Envolvimento Militar dos EUA no Golfo Pérsico”.
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