Nas últimas semanas, diversos ataques contra centros de refugiados foram realizados na Alemanha. Também foram alvos locais vistos como apoiadores das milhares de pessoas que chegam ao país diariamente. Um dos principais partidos do país, o SPD (Partido Social-Democrata da Alemanha), teve sua sede em Berlim evacuada após uma ameaça de bomba, e políticos vistos como “pró-refugiados” também foram atacados. No ano de 2014, foram realizados mais de mil ataques por motivações xenófobas, de extrema-direita ou neonazistas. A sequência de eventos mostra alguns aspectos da atual política europeia e alemã, alguns que remontam à reunificação do país, inciada em 1989 e concretizada em 1991.
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Agência Efe
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Os ataques, embora assustem pelo número, não são novidade. O governo alemão possui uma agência, a Verfassungsschutz (BfV), que realiza atividades de segurança e de inteligência doméstica. Um ramo da agência é especializado em monitorar as atividades e os membros desses grupos; de fato, o nome seria traduzido como Secretaria Federal de Proteção à Constituição, carta que proíbe atividades apologéticas ao nazismo. Segundo o BfV, mais de 15 mil crimes de ódio e ideologicamente motivados ocorreram em 2010, com 762 deles violentos. Ou seja, a preocupação atual é com o aumento do número de ataques violentos, embora esses também não sejam algo novo. Alguns são notórios, como os assassinatos em série, cometidos por neonazistas, de imigrantes turcos entre 2000 e 2007, conhecidos pelo nome midiático de Assassinatos de Bósforo, referência ao estreito turco.
Boa parte dos ataques neonazistas e de extrema-direita ocorrem no território onde um dia foi a RDA (República Democrática Alemã), conhecida popularmente como Alemanha Oriental. Antes de analisarmos o motivo de isso acontecer, antecipa-se uma explanação. Revisionistas contemporâneos tentam categorarizar o nazismo como um fenômeno da esquerda do espectro político. Embora a explanação seja profunda e extrapole os limites desta análise, essa argumentação é muitas vezes simplista e sempre anacrônica. Imputa-se o nazismo como “de esquerda” pelo fato de ser um regime autoritário centrado no Estado, colocando a direita como ligada ao liberalismo político. Quando da ascensão do nazismo, o liberalismo (especialmente econômico) estava descreditado com a crise que culminara em 1929.
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As saídas da crise foram, sem exceção, pela concentração de poder e autoridade no Estado. Seja o democrático EUA de Roosevelt e seu New Deal, o totalitarismo de esquerda, cujo maior exemplo é o período stalinista, e o totalitarismo de direita, o nazismo e os fascismos, como o fascismo clerical espanhol. Baseados, ao contrário dos movimentos então contemporâneos de esquerda, no nacionalismo, no capital industrial e em valores como raça, etnia e moralidade conservadora. Evitando o anacronismo fácil e sedutor, o neonazismo e a extrema-direita caminham juntos na Alemanha atual. Por qual motivo, então, esses movimentos se concentram no território da antiga RDA?
Na ex-RDA, economia e política
O primeiro motivo, econômico, é pelo fato de ser uma região ainda em desenvolvimento discrepante do restante do país. Essa diferença de economias explicita uma sociedade com maiores índices de desemprego e menores salários. E, tanto em 2015 quanto na década de 1930, uma massa de homens, jovens, sem trabalho ou com empregos insatisfatórios leva ao fortalecimento de movimentos radicais, que, por sua vez, levam aos atos de violência organizada. Um radicalismo que, em parte, se alimenta da xenofobia, de vilanizar o outro, o recém-chegado.
O imigrante ou o refugiado são os responsáveis pelo jovem alemão da região oriental não ter um bom emprego, nesse raciocínio. Escapa aos xenófobos radicais que a má situação econômica da região tem suas origens em uma conturbada reunificação econômica, nada relacionada às pessoas que buscam fugir de zonas de conflitos ou que procuram uma vida melhor, para nos atermos aos imigrantes recentes. Além disso, diversas das colônias estrangeiras na Alemanha já estão em segunda geração, como muitos turcos que vieram nas décadas de 1960 e 1970, com convite do governo alemão.
Agência Efe
Os ataques xenófobos no cerne de uma crise de refugiados expõem as disparidades tanto da sociedade alemã quanto da Europa
A Alemanha, em uma fase de reconstrução e crescimento econômico assombroso, necessitava de mão de obra, já que estava em um déficit demográfico problemático, consequência dos 7 milhões de alemães mortos na Segunda Guerra Mundial, civis e militares. O nome desses imigrantes é Gastarbeiter, literalmente “trabalhador convidado”. Também se encaixam nessa categoria muitos iugoslavos e nacionais de ex-repúblicas iugoslavas, refugiados após as guerras da década de 1990. Retornando à ex-RDA, o segundo motivo é político. A Alemanha Oriental, sendo um país autoritário, não permitia tampouco incentivava o fluxo de nacionais e o estabelecimento de estrangeiros no país. Temos uma cultura que não está habituada em lidar com “o outro”.
Claro que isso não é uma generalização, falando por todas as pessoas nascidas ou criadas nos parâmetros do antigo país, mas a demografia deixa evidente. O Departamento de Estatísticas Federal da Alemanha (Destatis) produziu uma série de contrastes entre as duas regiões na ocasião dos 25 anos da derrubada do Muro de Berlim. Os estados alemães correspondentes à RDA possuem presença estrangeira quase ínfima. Tais dados foram trasnformados em gráficos pelo Washington Post e podem ser vistos, traduzidos, aqui. São nos estados orientais da Alemanha que o NPD (Partido Nacional Democrata), de tendência neonazista, consegue eleitores, elegendo um representante no Parlamento Europeu e cinco representantes no estado oriental de Mecklenburg-Vorpommern.
Crise humanitária
A chanceler Angela Merkel classificou como “repulsivo” ter que lidar com esse tipo de ataque. Ao visitar um dos centros para refugiados, anunciou que as Forças Armadas irão garantir a segurança das pessoas. A Alemanha espera receber cerca de 800 mil refugiados em 2015. O país é destino principal da chamada “rota balcânica”, de refugiados terrestres. Itália e Grécia são também dois dos países mais afetados pela atual crise, por serem o destino das rotas pelo Mediterrâneo. Fica evidente a necessidade de uma política migratória da União Europeia.
Um pacote de medidas foi acordado nos últimos dias, mas ainda é fraco perante o tamanho do desafio. Algumas das medidas são a redistribuição de refugiados na Itália e na Grécia, o estabelecimento de missão naval permanente na costa da Líbia e maior velocidade tanto no expedimento de refúgio quanto na recusa de imigrantes vindo de países estáveis. Também foi debatida, sem sucesso, uma política de cotas de imigrantes para cada país europeu, aliviando as fronteiras europeias. A essência de uma solução europeia deve passar por escolher se a Europa vai enfrentar a situação coletivamente ou como mero agregado de países.
A superação da atual crise humanitária é fundamental para saber-se o que será da Europa em um futuro próximo. O constante projeto de construção de uma Europa federalizada, citado por acadêmicos e políticos como o português José Manuel Barroso, corre risco. Além da necessidade de uma “Fazenda europeia” para temas fiscais, deve-se evitar que as velhas fronteiras retomem o protagonismo. O Reino Unido, que nunca participou da Área do Acordo Schengen, já caminha ao isolacionismo tradicional britânico, com o governo Cameron cogitando a saída da UE e mais restrições fronteiriças. Os recentes ataques neonazistas e xenófobos em uma Alemanha no cerne de uma crise de refugiados, além de repulsivos, expõem as disparidades tanto da sociedade alemã quanto da Europa.
* Filipe Figueiredo é redator do blog Xadrez Verbal