Alçamos, neste mês, a efeméride de 10 anos desde as chamadas “Jornadas de Junho”, período de grandes manifestações que se espalharam pelo Brasil e produziram efeitos políticos duradouros na conjuntura brasileira e que suscita perspectivas polêmicas e contraditórias na esquerda brasileira, para além, as jornadas e os acontecimentos posteriores, foram capazes de formar uma nova geração de ativistas e militantes de esquerda. Mas, acima disso, a tarefa de resgatar e analisar o passado consiste em obter lições, tanto dos êxitos de uma mobilização de massas que não ocorria no país há pelo menos 20 anos, quanto das vacilações de uma esquerda, que carecida de um horizonte estratégico e de uma liderança coesa entre as massas, que não soube direcionar a revolta para impulsionar as mudanças necessárias para o Brasil.
O fato é que desde então a política brasileira nunca mais foi a mesma, as jornadas, iniciadas por setores populares, especificadamente o Movimento Passe Livre e sua reivindicação pela revogação do aumento das passagens na cidade de São Paulo – sob gestão do então prefeito e hoje Ministro da Fazenda, Fernando Haddad – foi, iniciada nas periferias e confins de São Paulo, com um caráter visivelmente popular e uma demanda historicamente progressista – o Direito à Cidade – ao se dissipar para o palco da maior quadra de atos políticos da capital, a Avenida Paulista, os atos foram, logo de início, fortemente reprimidos, tanto pelo braço armado do estado, a Polícia Militar, quanto pela reação da mídia hegemônica, que, em um primeiro momento se dedicou a destacar as manifestações como agrupamento de vândalos e rebeldes .
O Brasil testemunhou um fenômeno novo, o papel das redes sociais na difusão dos fatos políticos. As imagens da violência praticada pelas polícias contra manifestantes pacíficos circularam pela internet e provocaram forte comoção e solidariedade, de modo com o qual a grande mídia, que em um primeiro momento se dedicava à apoiar as ações repressivas da polícia e taxar os manifestantes como “vândalos”, passou a reconhecer as arbitrariedades das forças de segurança e o caráter “pacífico” dos manifestantes.
O apoio da mídia repercutiu em uma ampla solidariedade das camadas médias urbanas aos manifestantes, sobretudo após o dia 13 de Junho, em que após a disseminação das cenas de violência policial tomou conta das redes e dos principais veículos de comunicação do país, de modo com o qual esses setores rapidamente passaram a aderir aos protestos e buscar esvaziar seu conteúdo, as manifestações se espalharam por diversas capitais e até mesmo cidades do interior e aos poucos, deixaram de ter como pauta central a demanda pela redução das passagens, posteriormente conquistada em razão da revogação do aumento, momento pelo qual o MPL sagrou-se vitorioso, e passaram a ter demandas difusas.
Capitaneadas gradativamente por setores da direita, que rechaçavam a presença de partidos políticos e organizações de esquerda, sob a mácula genérica do “combate à corrupção”, e pela oposição vazia ao PT abriram caminho para que setores nefastos ascendessem ao cenário político nacional, deu-se então à formação, sobretudo pelas redes sociais de movimentos como o “Vem Pra Rua” e “Movimento Contra a Corrupção”, que mais tarde figurariam como forças importantíssimas para a articulação dos atos golpistas que levaram à queda da presidente Dilma Rousseff. Essas organizações não emergiram do acaso, mas foram resultado de um período de gestação anterior em que se construíram as bases para a organização de uma nova direita, advinda sobretudo do ambiente virtual e com certa difusão entre as camadas mais abastadas da juventude.
Interpretações que colocam o as Jornadas como o “Ovo da Serpente” da ascensão da extrema-direita no país se revelam extremamente limitadas, não observam as jornadas como um capítulo de acirramento da luta de classes pelo qual a esquerda brasileira não foi capaz de canalizar, isso por falta de uma estratégia e de pela ausência de um elevado grau de consciência das massas. Mas que, por sua vez, não guarda uma relação direta, com exceção da emergência da pauta “contra a corrupção” com as manifestações golpistas que se disseminaram a partir de 2014. Lembremos que, em 2013, em diversas capitais, forças populares historicamente envolvidas nas lutas sociais estavam presentes e ativas, como o MST, MAB e UNE.
Wikicommons
Junho de 2013 começou com o Movimento Passe Livre e sua reivindicação pela revogação do aumento das passagens em São Paulo
Cabe a esquerda se questionar: o que possibilitou com que a direita se apropriasse das Jornadas e se sagrasse, a longo prazo, como vencedora dessa batalha?
Em primeiro lugar, sustento que uma crise de direção e uma crise programática possibilitaram a cooptação do movimento pela direita. O Movimento Passe Livre e forças adjacentes, cultivavam uma tradição horizontalista, que levavam às deliberações políticas e escolhas essenciais serem tomadas em grandes assembleias, motivo pelo qual as lideranças não se realizavam como grandes formuladores, mas apenas “porta-vozes” do movimento, sem papel político decisivo na decisão dos rumos do movimento e suas posições públicas, bem como, foram incapazes de apresentar um horizonte programático para além das demandas imediatas pela passagem, já que se tratava de um movimento social específico às demandas relacionadas à democratização e universalização do acesso ao transporte público.
Essa incapacidade se relaciona com a própria natureza do movimento e com o tipo de política que se gestava desde o início da década com movimentos como o “Ocupy Wall Street”, que, embora de um caráter combativo e anticapitalista, não conseguiam converter-se em uma força social transformadora e acumuladora de vitórias, em razão de suas limitações organizativas e de uma estratégia de tomada do poder .
Em segundo lugar, tem peso a impopularidade das políticas levadas à cabo pelo Partido dos Trabalhadores entre os setores médios da população. As políticas de assistência social, que se refletiam sobretudo na melhoria de vida entre as alas mais pobres da classe trabalhadora não se reverberaram em mudanças significativas no padrão de vida da classe média, que se via alijada de uma política voltada à seus interesses, perdia seu prestígio social, uma vez que a ascensão das camadas inferiores lhe provocava certo “ressentimento”. Esse vácuo subjetivo encontrou vazão nas forças de direita, que direcionaram a causa da frustração das camadas médias sobre aa corrupção e as políticas assistenciais, cultivando nesses grupos um verdadeiro ódio aos mais pobres.
Ressalte-se também, que naquele contexto, marcado pelos grandes eventos como a Copa das Confederações, Copa do Mundo da FIFA e Jogos Olímpicos, houve um expressivo aumento no custo de vida nos grandes centros urbanos, que já não estava mais à par com as políticas de distribuição de renda, o descontentamento pode ser analisado também por outro prisma, que foi a derrota eleitoral de Haddad nas eleições municipais de 2016.
Defendo que as jornadas de junho de 2013 podem ser descritas por dois prismas, o primeiro, como “Irrupção”, conceito elaborado por Henri Lefebvre que descreve levantes de massas, explicado por fatores imediatos do contexto histórico, no nosso objeto de análise, o aumento do transporte público, bem essencial à vida humana e a atmosfera de encarecimento do custo de vida nas grandes capitais. Soma-se a isso, certo vácuo político das organizações de esquerda, que capitaneadas pela estratégia Democrático-Popular, tinham se conformado, dentro dos governos petistas, a afastar-se das ruas e serem cooptadas pela institucionalidade.
A breve lição que fica é a necessidade imperiosa de construção organizativa, isso vale para todas as esquerdas em suas diversas tradições teóricas e políticas. Apenas com uma organização forte e respaldada pelas massas poderemos, em inevitáveis novos momentos de erupção que hão por vir, nos sagrarmos como donos das ruas e mesmo diante do descontentamento popular, acumular lições e não derrotas. Construção essa que deve vir acompanhada de um horizonte estratégico de tomada do poder político.
(*) Silas Ramos é Estudante da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)