A comoção (justa) com o “não estou nem aí” de Tarcísio de Freitas, do Republicanos (sic), a respeito das denúncias a organismos internacionais de direitos humanos sobre as chacinas promovidas pela Polícia Militar na Baixada Santista obscureceu o debate imprescindível dos ataques reiterados e crescentes à educação paulista.
Não que a conivência indisfarçada do governador com a verdadeira guerra de milícias levada a cabo pela Polícia Militar deva ser minimizada. Mas o ataque contínuo e apenas em parte sorrateiro do ex-capitão à educação do Estado mais populoso e rico do País não pode continuar passando desapercebido fora do âmbito dos educadores e suas entidades ou dos poucos parlamentares comprometidos com a área.
Basta recapitular que o início dessa relação de ódio à educação começou com a escolha do empresário paranaense Renato Feder como Secretário de Educação de São Paulo. Não apenas porque Feder desconhecesse completamente o complexo sistema educacional paulista, como de resto o próprio Tarcísio mostrou, durante os debates com Haddad, total desconhecimento do Estado.
Certamente pesaram nessa indicação os bons serviços que Feder havia prestado ao projeto obscurantista de destruição do sistema público de ensino como Secretário de Educação no Paraná, onde se notabilizou pelas propostas de terceirização dos serviços da merenda escolar e pela polêmica proposta de criação de um novo modelo de ensino à distância em que cada professor teria uma “classe” online de 700 alunos.
Mas aparentemente pesou ainda mais a oportunidade de fazer “bons negócios” – para eles, não para a educação –, na medida em que Feder é acionista majoritário (agora indiretamente, via uma offshore) da Multilaser, empresa que atua na área de equipamentos e software.
O primeiro escândalo estourou exatamente quando se descobriu que o Estado mantinha com a Multilaser contratos de mais de 200 milhões de reais, gerenciados pela Secretaria de Educação, o que constituía óbvio conflito de interesses. O argumento de que Feder não assinaria novos contratos só convenceu os mais empedernidos bolsonaristas e, claro, a nossa grande imprensa.
Talvez a recusa de Tarcísio em distribuir os livros didáticos preparados e distribuídos gratuitamente pelo Governo Federal por meio do PNLMD – Programa Nacional do Livro e do Material Didático –, tenha sido a medida mais notada, tanto pela repercussão entre os educadores quanto pela decisão judicial que obrigou o governo a voltar atrás.
O escândalo seguinte explicava o anterior. O FDE (Fundo para o Desenvolvimento da Educação) autorizou a compra, sem licitação, de 68 títulos de livros digitais no valor de 4,5 milhões de reais, da empresa Bookwire. Três dias depois o governo foi obrigado a recuar e anular a compra.
O afã repressivo contra as escolas não nos deu um dia de sossego, e tivemos que assistir ainda à instalação automática e ilegal do programa “Minha Escola SP” nos celulares pessoais dos professores. Algo semelhante havia acontecido no Paraná. Novamente houve o recuo justificado como “falha técnica” do setor de informática.
Depois disso, foi a orientação de que os diretores de escola produzissem relatórios semanais disciplinares sobre alunos e professores e mais recentemente a proposta, já enviada à Assembleia Legislativa, de implantação de 100 escolas militares no Estado, reproduzindo para PMs aposentados o cabidão de empregos para os militares de Bolsonaro, que Lula cancelou no plano federal.
A joia da coroa é, naturalmente, a proposta de PEC estadual para reduzir, dos atuais 30% para 25% o percentual de impostos a ser obrigatoriamente aplicados na educação. A justificativa é a necessidade de ampliar os recursos para o financiamento da saúde, mas ganha um lugar no céu dos bolsonaristas quem acreditar que existe alguma chance desses recursos irem para o SUS.
De menos repercussão na mídia, mas não menos impacto na ciência e na tecnologia nacionais, são duas ameaças que pairam sobre as universidades estaduais paulistas, responsáveis por quase 40% da produção científica brasileira (metade disso na USP).
Hoje as três estaduais (USP, UNICAMP e UNESP) dependem de brigar a cada ano para a manutenção na LOA – Lei Orçamentária Anual – do percentual de 9,56% da cota-parte estadual do ICMS, definido em decreto no governo Orestes Quércia, que os governos tucanos nunca quiseram transformar em lei ordinária.
Com a reforma tributária e o fim do ICMS será necessário definir uma nova base de cálculo mediante negociação com o governo do Estado e sua base na Assembleia. Ganha outro lugar no paraíso dos crédulos quem acreditar (isso parece incluir parcelas das altas administrações das estaduais) na promessa de Tarcísio de manter o valor atual.
A segunda ameaça é a de rebaixar drasticamente o teto salarial dos docentes das universidades estaduais, mas isso já exige outra coluna para explicar o imbróglio.
Por ora fica claro que o ex-militar carioca não quebrou o martelo pelo prazer de vender apenas os patrimônios materiais da população paulista. A educação paulista, o maior investimento no futuro do estado mais rico do país, também está na alça de mira.
(*) Carlos A. Ferreira Martins é Professor Titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP – Campus de São Carlos.