O sujeito é uma instituição – algo kitsch, é verdade – que representa uma média do pensamento médio anglo-saxão há pelo menos 55 anos.
Nascido na Inglaterra e estabelecido nos Estados Unidos no final dos anos 60, Tom Jones é um baita cantor e alegoriza um lado espalhafatoso, um tanto exuberante, dessa tal identidade anglo-saxã, WASP (branca-anglo-saxã-protestante), ou como se possa chamar.
Aos 70 anos, Tom Jones já viveu muitos altos e baixos, e se encontra hoje em mais uma de tantas fases de subida, a bordo dos elogios rasgados colhidos pelo novo disco Praise & Blame. No passado, Jones apareceu como cantor tradicional, um diluidor de Frank Sinatra e assemelhados, portador de hits de teor pop mais acentuado, como It’s Not Unusual e What’s New Pussycat?, ambos de 1965. Antes mesmo de se mudar para os EUA, adotou uma identidade mais próxima da country music, de música de faroeste norte-americano popificada, que seguiu adiante até, no mínimo, meados dos anos 80.
Camaleônico, reinventou-se (e não raro se fantasiou) inúmeras vezes, como em 1988, quando reacendeu o sucesso de Kiss (1986), um funk envenenado do ídolo black Prince, numa nova roupagem dividida com o grupo eletrônico vanguardista The Art of Noise. Essa virada o colocou em sintonia com a música pop comercial e dançante, afinada com a chamada cena club norte-americana.
Sempre possuiu forte apelo sexual. De um modo longinquamente aparentado com nosso Wando, acostumou-se a ser bombardeado com roupas íntimas atiradas pelas fãs em seu palco. Sex Bomb foi o êxito do álbum Reload, de 1999 (quando ele já tinha 59 anos), entre duetos deliciosos com gente mais jovem, como The Cardigans, Robbie Williams, Portishead e The James Taylor Quartet.
O motivo principal da nova onda de valorização de Tom Jones não é mais uma experiência de modernização, mas um disco que chega tratado como um “American songbook” típico, uma coleção de canções americanas (o que inclui tão somente o cancioneiro dos americanos dos Estados Unidos, e de nenhuns outros). Isso inclui composições de entidades como Bob Dylan (What Good Am I?) e John Lee Hooker (Burning Hell), e também momentos de poesia musical de sensibilidade orientada a blues & country & western, como em Did Trouble Me (de Susan Werner).
Há aí uma deturpação, no entanto. Não se trata propriamente de um “American songbook”, mas antes de uma coleção de canções de fundo religioso – quase todas as faixas mencionam explicitamente Deus, ou, no mínimo, Jesus Cristo. O próprio título do disco, algo como “santidade & culpa”, sinaliza nessa direção.
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Mas há traços de confusão na mensagem de fé que Tom Jones pretende transmitir. Em Strange Things (de Rosetta Tharpe), a voz trovejante canta que “nós ouvimos o povo da igreja dizer/ que eles estão no caminho sagrado/ há coisas estranhas acontecendo todo dia” – e não é possível saber ao certo se há um fiapo (auto) crítico nessa manifestação ou não.
Em outro ponto, Nobody’s Fault But Mine (de Jones com o produtor do CD, Ethan Johns), a atmosfera de reverência religiosa se funde à segunda metade explicitada no título (a culpa), e entra em cena um narrador atormentado, não satisfeito em simplesmente louvar e agradecer aos céus: “A culpa é minha e de mais ninguém/ se eu morrer e minha alma se perder/ a culpa será minha e de mais ninguém”.
Pode estar se referindo simplesmente a doutrinas WASP de proselitismo e convencimento religioso, mas é curioso como o caldeirão remexido por Tom Jones aponta para uma alma americana (ou melhor, norte-americana, estadunidense) dividida, esfrangalhada, desorientada, cheia de sentimento de culpa.
Como nota à parte, talvez caiba mencionar que Praise & Blame vem com material bônus acessável via internet, inclusive uma entrevista em que o artista fala sobre o disco. Mas na edição brasileira, lançada pela filial local da EMI, o ouvinte que tenta saber mais encontra a seguinte mensagem (em inglês): “Obrigado por tentar acessar o microsite de Praise & Blame. Infelizmente, devido a restrições contratuais, o acesso a essa promoção não está disponível para moradores do Brasil”. Se é que se trata mesmo de um “American songbook”, será que o Brasil faz parte dessa América?
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