O subprocurador Paulo Gonet deverá ser indicado nos próximos dias pelo presidente Lula para a Procuradoria-Geral da República (PGR), a serem corretas as informações vazadas off the records por auxiliares presidenciais. Seu nome é resultante de uma indicação comum dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, tendo o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, como padrinho, além de apoio amplo no Centrão e no bolsonarismo. Se for concretizada a indicação, o Brasil corre o risco de ter talvez o mais reacionário PGR de sua história, em pleno governo do PT.
Ao longo de sua trajetória, Gonet defendeu a ditadura militar, foi um protagonista da Lava Jato e namorou o bolsonarismo. Católico ultraconservador, é defensor de todas as teses reacionárias do fundamentalismo cristão. Não bastasse isso, foi contra as cotas.
A biografia de Gonet é tão espantosa para o cargo que, no domingo à noite (19/11), um grupo formado por 49 entidades, intitulado “Coalizão em Defesa da Democracia”, enviou uma carta a Lula apresentando um veto irrecorrível ao nome. Participam da Coalizão, entre outros, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Grupo Prerrogativas, a Associação Juízes e Juízas para a Democracia, Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e a Articulação dos Povos Indígenas (Apib).
Vale a pena listar algumas peças do ideário de Gonet e algumas ações que teve em sua carreira. Paulo Gonet, aos 62 anos, é membro do Ministério Público Federal desde 1987, subprocurador-geral da República e o atual vice-procurador-geral eleitoral.
1. Gonet e a ditadura: Na década de 1990, atuou nos julgamentos na Comissão de Mortos e Desaparecidos como representante do Ministério Público Federal. À época, ele votou contra o reconhecimento da responsabilidade do Estado em casos de grande repercussão, como o assassinato da estilista Zuzu Angel, em 1976; do estudante secundarista Edson Luís, assassinado em 1968; de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, mortos em 1969 e 1971. Felizmente, foi derrotado.
2. Gonet e a Lava Jato: Em 2016, representando a PGR na Segunda Turma do STF, Gonet enrolou-se na bandeira da Lava Jato, como mostrou ao investir contra Gleisi Hoffmann e seu então companheiro, Paulo Bernardo. Acusou-os de corrupção e lavagem de dinheiro pelo “crime” de receberem verbas legais para campanha eleitoral. Na denúncia, Gonet afirmou que Gleisi e Paulo Bernardo teriam pedido e recebido R$ 1 milhão desviado da Petrobras para a campanha dela ao Senado, em 2010. Era uma farsa. Mas Gonet, no espírito do lavajatismo, redigiu um texto coberto de expressões como “esquema criminoso”, à moda da época. Em 2018 a própria PGR voltou atrás e defendeu a rejeição da denúncia. Gleisi e Paulo Bernardo foram absolvidos.
3. Gonet e as cotas: Em julho de 2010, antes da aprovação da Lei de Cotas (que aconteceria em 2012), Gonet participou do julgamento de um mandado de segurança sobre cotas na qualidade de Procurador Regional da República. A Universidade Federal do Pará havia implementado política de cotas, como outras universidades o fizeram no processo que levou à aprovação da Lei em 2012 – a primeira foi a UFRJ, seguida pela própria UFPA, UnB e UFRGS. O mandado havia sido impetrado por uma estudante que se sentiu prejudicada pela instituição das cotas. O parecer de Gonet foi a favor dela e contra a UFPA. O mais grave nem foi o voto, mas os argumentos do agora candidato à PGR: “a política de cotas significa restrição a direito fundamental”; “a política de cotas envolve restrição genérica de direitos fundamentais de integrantes da maioria da população, por ela não beneficiada”; “o sistema de cotas constitui o meio mais polêmico e sensível de se alcançar essa meta (combate a desigualdades), justamente por envolver o que já se chamou de jogo de soma zero, na medida em que aquilo que se entrega a alguém, a serviço da igualdade de fato, é subtraído de outrem, em detrimento do que recomendaria a igualdade formal de direito”. Veja aqui a íntegra do parecer.
Marcelo Camargo / Agência Brasil
Ao longo de sua trajetória, Gonet defendeu a ditadura militar, foi um protagonista da Lava Jato e namorou o bolsonarismo
4. Gonet e a “discriminação reversa”: Alguns anos antes, em 2002, já como membro do Ministério Público e mestre em Direito pela Universidade de Essex, Gonet apresentou um trabalho ao V Congresso de Direito Constitucional do IDP no qual atacou a política de cotas, cuja discussão já se iniciara, e discorreu longamente sobre o que chamou de “discriminação reversa” (a íntegra está aqui). Neste trabalho ele já alinhava teses que usaria no parecer de 2010 contra a UFPA. Sobre as cotas afirmou: “o sistema de cotas é capaz de engendrar injustiças inaceitáveis, política e juridicamente”. No trabalho, ele usa a expressão “discriminação reversa” 10 vezes. Num dos trechos da apresentação, à guisa de atacar o que viria a ser a política de cotas anos depois, Gonet explicitava: “a discriminação reversa implica selecionar, previamente, uma categoria de pessoas para receber certos bens, que, de outro modo, seriam disputados por uma coletividade mais ampla. A discriminação reversa envolve decisão de beneficiar um segmento da população, no momento de distribuir cargos, vagas em universidades, contratos com governos, promoções no serviço público. Esses bens e interesses ficam subtraídos do alcance dos não-beneficiados pela política em causa. O que caracteriza a discriminação reversa – e o que a torna controvertida – é precisamente a circunstância de que o favorecimento de um grupo implica, necessária e imediatamente, a evidente exclusão de outro”. Tanto no trabalho de 2002 como no parecer de 2010, Gonet revela-se alienado da composição demográfica brasileira, pois diz que as ações afirmativa/política de cotas (“discriminação reversa”) prejudicariam a maioria – ele ignora solenemente que as pessoas negras são maioria da população. Há divergentes interpretações na academia sobre o uso da expressão “discriminação reversa”, mas não poucos estudiosos afirmam que a expressão pode ser lida como uma versão adocidada do “racismo reverso”, tão ao gosto dos supremacistas brancos.
5. Gonet e as eleições: Uma das justificativas dos que defendem a indicação de Gonet é o fato de ele ter se alinhado a Alexandre de Moraes em julgamentos recentes sobre os crimes de Bolsonaro e dos bolsonaristas. Mas, há pouco mais de um mês, ele defendeu no TSE a rejeição de três ações de investigação eleitoral contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), acusado de abuso político ao usar a estrutura do governo durante as eleições. As ações abordam o uso dos palácios da Alvorada e do Planalto pelo ex-presidente para a transmissão de lives de caráter eleitoral, e também para encontros com políticos e artistas que visavam o anúncio de apoio no segundo turno das eleições. Há mais indícios sobre as relações de Gonet e o bolsonarismo: na carta a Lula, a Coalizão em Defesa da Democracia contesta a ação do procurador-geral eleitoral no período eleitoral em 2022: “Paulo Gonet omitiu-se, ao longo dos 70 dias de campanha, sobre o uso de desinformação contra o processo eleitoral e a exploração da máquina pública”. O texto lembra que, naquele ano, estava em vigor uma resolução do Tribunal Superior Eleitoral que dava ao Ministério Público Eleitoral a atribuição de solicitar a proibição imediata de circulação de fake news durante o pleito. E completa: “no entanto, nos mais de 10 meses em que esse dispositivo esteve em vigor, a única iniciativa do Ministério Público Eleitoral referiu-se ao evento de exposição de informações falsas sobre as urnas eletrônicas para embaixadores em Brasília, no mês de julho”.
6. Gonet, o ultraconservador: Em pleno governo Bolsonaro, a deputada federal Bia Kicis (PL-DF), uma das líderes da extrema direita no país, chegou a defender o nome de Gonet para a PGR e disse na ocasião que ele é um “conservador raiz”. Ela tem razão. Gonet esteve com Lula e foi se queixar do fato de segmentos democráticos do país qualificarem-no de ultraconservador. Ele teria dito a Lula: “Presidente, querem me descredenciar porque eu sou muito religioso. Preciso dizer ao senhor que sou e que não vejo demérito nisso”. Gonet teria engambelado Lula com uma fake news. A questão não é ele ser religioso, mas o fato de ser um católico ultraconservador. O candidato nega ser membro da Opus Dei, como é voz corrente em Brasília. De fato, não é possível afirmar que ele o seja. O que se sabe é que ele é amigo íntimo de Ives Gandra Filho, este sim, um membro assumido da Opus Dei, bolsonarista raiz e contrário a todos os direitos dos trabalhadores.
7. Gonet e o golpe à frente: A indicação de Gonet à PGR, se confirmada, será mais um duríssimo golpe nas forças democráticas do país. A PGR será entregue nas mãos de Gilmar Mendes, de Alexandres de Moraes e do Centrão, e terá forte influência bolsonarista. Irá redundar, fatalmente, mais dia menos dia, numa nova Lava Jato e na tentativa da derrubada de Lula.
O artigo original da Revista Fórum pode ser lido neste link.