Para a Itália, 2019 foi um ano de mudanças políticas. O país viveu metade do ano sob a ótica da política do terror da extrema-direita, colocada pela coligação dos partidos Liga Norte e 5 Estrelas, e a outra metade sob um governo de centro-esquerda, onde predomina a coalizão entre o Partido Democrático e o 5 Estrelas. O primeiro-ministro, em ambos governos, foi e é Giuseppe Conte.
Parece estranho que, tirando a Liga Norte, os mesmos quadros políticos tenham passado de uma agenda política excludente e racista a uma inclusiva e progressista? O elo principal das duas formações é o 5 Estrelas. É preciso conhecê-lo para entender o que aconteceu no país.
O movimento não gosta de ser chamado de partido e se autoproclama “nem de esquerda, nem de direita”. Mas sua base é formada por uma maioria progressista que não ficou nada feliz com a aliança feita com a Liga Norte, ano passado, quando foram eleitos para governar o país. Como não havia maioria no Congresso, era necessária a coligação ou se tornava ao voto.
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Uma aliança política com o Partido Democrático seria impensável, visto a luta travada entre o movimento e o ex-primeiro-ministro Matteo Renzi A Liga nunca escondeu o que é: um partido xenófobo, que tem um líder – Matteo Salvini – racista, homofóbico e machista. Todavia, o acordo entre os dois não foi imediato. A tratativa deixou o país em suspenso por 80 dias, mas aconteceu.
Giuseppe Conte, indicado pelo 5 Estrelas, foi eleito como primeiro-ministro, Luigi de Maio, do 5 Estrelas, ficou com o cargo de ministro do Trabalho e Matteo Salvini, da Liga, virou ministro do Interior. E assim nascia um governo populista na Itália.
Decreto de segurança e ausência de direitos
Salvini, como “superministro”, cumpriu as promessas de campanha: aprovou seu decreto de segurança que acabava com os vistos humanitários e jogava no olho da rua refugiados que viviam em estruturas de acolhimento. Estas, por suas vez, foram praticamente dizimadas.
Quem tinha proteção internacional, de um dia para o outro, se viu no limbo da ausência de direitos. Até o estrangeiro que mora há anos no país foi prejudicado com a renovação dos vistos, perdendo a regularidade de estadia. Perder a regularidade significa tornar-se irregular, clandestino.
Além disso, em meados de maio, o governo populista intensificou o ataque às ONGs que operam no mar Mediterrâneo salvando imigrantes de uma morte certa por afogamento, proibindo-as de atracar em portos italianos.
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Apesar da linha dura sobre a questão imigratória, que havia unido o 5 Estrelas e a Liga por um tempo, já não era suficiente para manter a coligação. A situação política começava a se fragmentar e as eleições europeias, realizadas em maio, foram o cavalo de batalha de ambos partidos. Isso porque, para os italianos, as europeias são como uma espécie de eleição legislativa. O partido de Salvini acabou sendo o mais votado no país para o parlamento europeu.
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Manifestação dos sardinhas em Bolonha contra Salvini reuniu ao menos 12 mil pessoas em novembro
Em agosto, a Liga ainda encabeçava as intenções de voto dos italianos e o ego de Salvini explodiu. O ex-ministro do Interior pediu plenos poderes e eleições antecipadas, rompendo de vez com a coligação do governo. Conte renunciou ao cargo e o governo caiu de vez. Salvini estava certo que sua tentativa de golpe funcionaria, mas um acordo do 5 Estrelas com o Partido Democrático impediu que os italianos voltassem às urnas. Com a nova base do novo governo formada, Conte aceitou o convite e voltou ao cargo de primeiro ministro.
A política do ódio disseminada por Salvini durante seu pouco tempo de governo começou, lentamente, a ser desmontada. O agora ex-ministro foi denunciado por sequestro agravado com abuso de poder do cargo de ministro por ter impedido por quatro dias que o navio italiano Gregoretti atracasse no porto de Augusta, em Siracusa, com mais de 100 imigrantes a bordo.
No dia 20 de janeiro de 2020, será votada a autorização para que Salvini possa ser processado. De Maio já avisou que votará a favor, porque “o bloqueio não foi uma ação do governo, mas do então ministro do Interior, foi uma ação pessoal”.
Comissão Segre contra o ódio, o racismo e o antissemitismo
Um dos capítulos mais horríveis da política seguida por Salvini foi o revisionismo. Mesmo não sendo mais ministro, suas ideias continuam a perpetrar no imaginário coletivo dos italianos. Seis fiéis seguidores disseminaram tanto ódio contra a senadora Liliane Segre, 85 anos, sobrevivente do Holocausto e dos campos de extermínio nazistas, que o presidente italiano, Sergio Mattarella, viu-se obrigado a destinar uma escolta policial para protegê-la.
Há tempos, Segre é alvo de insultos e ameaças nas redes sociais, insultos que ela não vê, pois não usa as redes sociais, mas que são conhecidos pela polícia. A senadora recebe cerca de 200 ameaças por dia, vindos, principalmente, se eleitores de Salvini e de Força Nova, movimento de extrema-direita composto por adoradores de Mussolini.
O ódio contra a ela a inspirou a ser a primeira signatária no Senado para a criação de uma comissão parlamentar contra o ódio (mais precisamente “para contrastar os fenômenos de intolerância, racismo, antissemitismo”). A Comissão, que leva seu nome, foi criada em 31 de outubro com 151 votos a favor. A Liga se absteve.
O que aconteceu com a senadora foi o estopim para dizer basta. Desde novembro passado, as praças italianas tem sido ocupadas pelas “sardinhas”, um movimento que nasceu na internet e reflete o desgosto, entre os italianos progressistas, pelo tom xenófobo e fascista de Salvini. O nome do movimento foi inspirado no ditado popular “amassados como em uma lata de sardinha”, para demonstrar que a praça anti-Liga é forte e numerosa.
E Veneza quase afundou
No âmbito ambiental, a Itália saiu na frente em, pelo menos, um quesito: será o primeiro país do mundo a ter a matéria “mudanças climáticas” como disciplina obrigatória nas escolas a partir de 2020.
Pelo menos isso, porque diante do fenômeno da água alta que, em novembro, inundou 80% de Veneza, no que foi considerado o pior alagamento em 53 anos, o conselho regional do Vêneto, votou contra medidas para contrastar as mudanças climáticas. Ironia do destino, a sala do conselho, que fica no Canal Grande, foi alagada dois minutos após a votação.