Nas últimas semanas estou me reconectando com a música. Desde sempre foi assim, são ciclos de presença e ausência, a música chega como trilha determinante ou fica ali quase desaparecida, fazendo o pano de fundo.
Hoje à tardezinha eu fiz uma pausa no café de um magazine de utensílios domésticos e numa rádio interna tocava uma música do Morrissey, o cara que junto com o guitarrista Johnny Marr compôs e cantou um grande pedaço lírico dos anos 80 do século passado, à frente do The Smiths.
Descobri logo depois que o que tocava era último single do tio Mozz de Manchester, que veio de uma tradição que se iniciou com Howard Devoto e Pete Shelley, os fundadores do Buzzcocks, banda seminal da cidade inglesa.
A canção “Brow of My Beloved” tem letra dolorida, romântica e uma bela melodia. Morrissey é muito talentoso e conseguiu sair do estereótipo dos anos 80 e se manter criativo e relevante.
A mistura do fim de tarde e a canção do velho cantor conhecido chegariam como brisa boa, se não fosse a lembrança de um importante detalhe: Morrissey assumiu um novo perfil nos últimos anos: o misantropo e vegetariano radical se revelou um direitista hidrófobo e xenófobo, apoiador do For Britain.
Definitivamente o avanço do conservadorismo no mundo mudou a nossa bússola e embaralhou nossas memórias. O posicionamento político e ideológico de alguém que nos afeta de alguma forma é uma coisa relevante. Não dá pra viver disfarçando, por mais que tentemos separar as coisas, uma divergência de fundo pesa na simpatia, antipatia ou simpatia.
Não dá pra ouvir Morrissey sem pensar no tipo de política que ele apoia, que gera violência, perseguição e mortes. Não há beleza de canção que encubra esse peso. A canção continua bela, mas o contexto muda tudo.
E tem uma outra história recente pra se juntar a esse reencontro com Morrissey.
Wikimedia
Ícone da música dos anos 1980, Morrissey tornou-se direitista hidrófobo e xenófobo, apoiador do For Britain
Na quinta-feira à tarde fui fazer minha tradicional visita na Galeria do Rock, mais especificamente na Araça Azul, loja do camarada Dagoberto Macedo. No meio da boa conversa que mescla música, política e papo furado, nos últimos tempos sempre calha de comentarmos o abismo ideológico que separa os músicos à esquerda e à direita.
No meio da conversa chegou o Zé, que é um cara muito conhecido na Galeria do Rock, pois trabalhou em diversas lojas ali, além de ser um longevo DJ de um dos meus antigos e ainda ativos salões de rock de São Paulo, o Fofinho Rock Club, que fica na Avenida Celso Garcia, Tatuapé.
Quando se junta um trio de cinquentões e suas referências políticas e musicais, a tendência é falar de coisas antigas. Dessa vez foi o álbum Caruá de 1980, gravado pelo guitarrista Paulo Rafael e o Zé da Flauta, ambos muito conhecidos como membros da banda do cantor Alceu Valença.
O disco, que está há muito tempo fora de catálogo, é sensacional, uma mistura de música regional com rock progressivo, um belo registro da música instrumental brasileira. Assim que citado, lembrei da música “Entardecer” e fiquei com um trecho da melodia tocando na cabeça.
E por que ainda não relançaram, em vinil ou CD, esse álbum?
Segundo o DJ lojista Zé, o próprio Paulo Rafael afirmou que enquanto o Zé da Flauta continuar com suas posturas direitistas, fã da Lava Jato, Moro e Bolsonaro, o disco não será relançado. Portanto, o que a música uniu, a política separou.
Zé da Flauta e Morrissey se juntaram num coro improvável e bizarro.
Eu tô aqui agora, meia noite e vinte e dois, escrevendo esse texto e ouvindo a canção “Brow of My Beloved” e o tema instrumental “Entardecer”. A trilha é bela, o enredo nem tanto. No final das contas, esse corte ao meio, esse abismo imposto, que separa as pessoas, é muito triste. Me pergunto se o mundo sem essa marca era uma ilusão ou era apenas um outro tempo.
Estamos no fim desse conturbado 2019, quis compartilhar com vocês esse entardecer com música e com as muitas indagações. Sei que as respostas são difíceis e diversas.