O frade capuchino francês Yves d’Evreux (1577-1632) deixou, em um relato de uma viagem ao Brasil, registrada uma violenta cena do processo de colonização. D’Evreux conta que havia um “hermafrodita” na aldeia Juniparã, na ilha de São Luís. Exteriormente, ele “parecia mais mulher do que homem”. Pela descrição do religioso, o índio capturado pelos colonizadores tinha voz e cabelos femininos, “embora fosse casado e tivesse filhos”. Capturado, ele foi amarrado à boca de um canhão, que foi disparado, dividindo seu corpo em duas partes, uma delas tendo desaparecido para sempre. Para o frade, essa foi uma ocasião para que os nativos entendessem e admirassem o julgamento divino.
O relato, publicado no livro de d’Evreux Voyage dans le Nord du Brésil, fait durant les années 1613 et 1614 (Viagem ao Norte do Brasil, realizada durante os anos de 1613 e 1614), foi retomado na obra Gay Indians in Brazil: Untold Stories of the Colonization of Indigenous Sexualities (Springer, 2017), dos antropólogos Estevão Rafael Fernandes, professor da Universidade Federal de Rondônia, e de Barbara M. Arisi, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).
A obra de Fernandes e Arisi procura entender como diversas práticas sexuais foram classificadas como impuras, pecaminosas e “desviantes”. Os pesquisadores associaram os estudos pós-coloniais com aspectos da teoria queer – desenvolvida em meados dos anos 1980 que, em linhas gerais, propõe que toda sexualidade é construída socialmente e deve ser explicada pelas relações humanas e não pela natureza. As fontes pesquisadas revelam, segundo os autores, “um policiamento ostensivo das sexualidades indígenas”, o que significava uma vigilância atenta por parte dos colonizadores de tudo que fugisse do padrão heteronormativo, num processo que não tinha apenas como fim controlar a sexualidade dos nativos. Ao classificar as práticas “desviantes” como “degeneradas” e “involuídas”, os colonizadores não apenas reprimiam os indígenas como também “criavam justificativas ideológicas que foram centrais no sistema de dominação colonial”, explica Estevão Fernandes.
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Ou seja, o controle da sexualidade seria mais um dos dispositivos mobilizados pelos colonizadores para dominar a população indígena local. Para Fernandes, “as formas pelas quais foi imposta uma sexualidade ‘normal’ deve ser compreendida em paralelo com as noções teológicas, filosóficas, científicas etc., a partir das quais os índios eram (e são) compreendidos no Brasil pelos setores hegemônicos da sociedade colonizadora”.
Estudar as sexualidades indígenas impõe uma série de questões para os pesquisadores. Isso porque elas não se enquadram nas categorias e representações que foram construídas por e para a sociedade branca ocidental. A própria ideia de homossexualidade é questionada pelos antropólogos. Em um segundo livro, este publicado em português, Fernandes traz o problema para o título: “Existe índio gay?” – A colonização das sexualidades indígenas no Brasil (Brazil Publishing, 2019). Afirmando que se trata de obra para não especialistas, o autor desdobra a interrogação do título em uma série de questões: “De que forma a desconstrução de uma pergunta aparentemente tão simples pode nos levar a rever nossos próprios preceitos e paradigmas de sexualidade e indigenidade (e/ou de conceitos como tradição e cultura)? O que podemos aprender sobre homofobia, colonialismo e racismo partindo desta questão?”.
New York Public Library/De Bry Collection
Imagem de Theodor de Bry retrata Vasco Núñez de Balboa ordenando execução de panamenhos indígenas por prática de ‘sodomia’
Fernandes afirma que trabalha, sim, com a ideia de índios gays ou, mais precisamente, com a de homossexualidades indígenas, mas sem uma definição fechada. “‘Homossexualidade’ se torna, para mim, neste livro, uma categoria guarda-chuva que dá conta de todo esse universo que não se enquadra no modelo hétero hegemônico”, afirma.
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O pedagogo especializado em educação indígena Paulo de Tássio Borges da Silva, da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), por sua vez, abandonou o termo homossexualidade, por acreditar que há nele – e também na própria teoria queer – algo de colonizador. “Essas classificações são nossas, não dos indígenas. Prefiro usar o termo ‘sexualidades indígenas indecidíveis”, esclarece. Uma das questões que Borges da Silva tem tratado em seus estudos é o discurso do indígena para o interlocutor não índio. Como houve, por séculos, um alto nível de controle sobre as identidades indígenas, os índios jogam com as expectativas do discurso “branco” sobre eles. Assim, há uma certa ideia de que os índios são “puros” e que as práticas não regidas pela heterormatividade seria resultado do contato com os colonizadores.
Esse discurso, afirma Borges da Silva, encontra eco em falas de diversas etnias do território brasileiro. O pesquisador contou que, durante um encontro de parteiras guarani, em agosto, uma liderança atribuiu a homossexualidade entre os indígenas a falhas na realização de rituais de passagem. “Essa liderança, no entanto, sabia que aquele encontro era assistido tanto por indígenas quanto por não indígenas, e essa fala deve ser entendida como parte da negociação entre índios e não índios”, explica.
“A etnografia busca trazer a forma como se representa a alteridade [o outro] e a diversidade”, sintetiza a antropóloga Márcia Gramkow, professora da Universidade de Brasília (UnB) e uma das organizadoras, com Ângela Sacchi, do livro Gênero e povos indígenas (Museu do Índio/Funai/GIZ, 2012). Ao pensar a totalidade das concepções de mundo das sociedades, a antropologia, desde Bronislaw Malinovski (1884-1942), um dos pais-fundadores da disciplina, tido como um dos pioneiros na demonstração da complexidade cultural das sociedades antes tidas como “atrasadas” ou “primitivas” pelo discurso científico dominante no início do século XX, sempre analisou aspectos das representações das sexualidades. “Cada sociedade tem uma forma de pensar o corpo. Os estudos antropológicos permitem pensar essas organizações e a fazer a aproximação entre as diferentes sociedades”, complementa.
O interesse pelas questões identitárias da atualidade e os movimentos sociais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT) permitiram novos olhares para as sexualidades indígenas, defende a professora da UnB. Mas as categorias e referenciais à disposição nem sempre dão conta dos problemas analisados. Por isso, avalia ela, novas categorias e contribuições devem surgir a partir do momento em que os povos indígenas descrevam a si mesmos.
Em um interessante caso de como a sexualidade indígena pode ser múltipla e diferente da sexualidade ocidental, Barbara Arisi, coautora de Gay Indians in Brazil, no texto “Vida sexual dos selvagens (nós): Indígenas pesquisam a sexualidade dos brancos e da antropóloga”, publicado em Gênero e povos indígenas, explora os questionamentos que as índias Matis, de língua Pano (habitantes da terra indígena Vale do Javari, no Amazonas) fizeram sobre sua sexualidade e a das mulheres brancas, durante sua pesquisa de campo.
Arisi conta que uma amiga indígena matis, de 39 anos, idade próxima à da pesquisadora, perguntou-lhe quem a tinha “aberto”: “Para ela, era uma pergunta comum, para saber quem tinha começado a abrir minha vagina, pois as mulheres matis passam por uma construção do corpo; além das perfurações nasais, auriculares da infância, elas têm a vagina também aberta bem devagar, num processo que se desenrola ao longo de alguns anos, em que um (ou mais de um) homem com quem ela poderia se casar no futuro usa o dedo para ajudá-la a abrir sua vagina”. A antropóloga respondeu que não havia passado pela experiência de abertura da vagina com o dedo antes, mas, sim, penetrada direto com um pênis. “‘Como?’ Minha amiga matis não podia acreditar que eu não fora preparada para a penetração do pênis. ‘E você chorou muito?’, ela perguntou. ‘Não chorei, mas doeu e sangrou’, respondi. Ao que ela questionou: ‘Sangrou? Como sangrou?’ Dessa vez era eu quem estava estupefata, e rebati a pergunta: ‘Você não sangrou?’ Minha amiga Matis respondeu que não, não sangrara na primeira vez em que um pênis a penetrara. ‘Pobre Barbara, ninguém te abriu com a mão, por isso você sangrou’”. Essas diferenças, no entanto, não valem para qualquer sociedade indígena. Cada etnia tem uma história e uma cultura própria.
Um exemplo de como as sexualidades indígenas permitem repensar questões relativas à sexualidade não índia pode ser lida no artigo publicado em 2015 na Revista de Antropologia “Travestilidades, gênero, sexualidades e etnicidades no litoral norte da Paraíba”, do sociólogo Martinho Tota, professor da Universidade Federal do Ceará. Tota reconstrói, de forma sintética, a trajetória de Britney, Jennifer, Scarlett, Lindsay e Naomi, cinco travestis indígenas, com idades entre 21 e 26 anos, dos municípios de Bahia da Traição e Marcação, na Paraíba. Todas elas eram filhas de relações interétnicas (entre uma mulher não-índia e um homem índio potiguar, ou vice-versa). Britney vivia num núcleo urbano, Naomi num distrito rural e Jennifer, Scarlett e Lindsay, em aldeias.
Na época da pesquisa, entre 2008 e 2012, Tota preparava seu doutorado e estava preocupado com temas como gênero, geração e sexualidades e suas relações com a questão étnica. Essa predominância do rural e do pequeno município permitiu ao pesquisador perceber como padrões normalmente identificados com a vida urbana, como a de travestilidade, estão presentes, com algumas características específicas, também no meio rural e nas aldeias indígenas da região.
Ou seja, não seriam padrões tão urbanos de sexualidade quanto normalmente se avalia. E, pelo menos nesse caso, a identidade étnica não tinha forte peso na autodefinição das outras identidades: todas as travestis, “ao serem instadas a respeito de uma possível distinção entre travestis e/ou homossexuais indígenas e ‘brancos’, e sobre uma possível erotização dos primeiros em relação a estes, afirmaram não haver qualquer diferença, para o bem ou para o mal, uma vez que, segundo Naomi, ‘o que eles têm, também eu tenho. E o que ele gosta de fazer, também eu faço’”, escreveu Tota.