Mais de 15 milhões de cidadãos chilenos vão às urnas neste domingo (17/12) para definir se a atual Constituição chilena, costurada na ditadura militar de Augusto Pinochet, em 1980, será abandonada por uma nova Carta Magna.
O documento vigente até os dias atuais foi duramente questionado durante o fervor do “estallido social” em 2019, marcado por uma série de protestos em todas as regiões do país e que pressionou o governo neoliberal do então presidente Sebastián Piñera, de direita, por mudanças. Este que, por sua vez, usufruiu das ferramentas de repressão do Estado em uma fracassada tentativa de coibir a postura da população chilena diante da crise social, despertando ainda mais o sentimento de injustiça e uma exigência para o descarte da Constituição em vigor em forma de abandonar os resquícios ditatoriais que assolavam (e assolam) a democracia do Chile.
No entanto, desta vez, o texto reformulado pelo Conselho Constitucional, eleito com uma maioria de representantes da extrema direita, coloca em questão alguns tópicos confrontados pelo progressismo chileno, o que gera uma contradição aos direitos exigidos durante as manifestações de quatro anos atrás.
Especialistas consultados por Opera Mundi avaliam que as propostas apresentadas neste novo projeto, diferente do texto que foi rechaçado em setembro de 2022 com 62% de votos, ameaçam o “bem-estar social” que, na medida do possível, tem se construído no país ao longo dos anos, ainda que de forma mínima.
“O que está em jogo nesta votação é o modelo de desenvolvimento e o julgamento crítico da classe política. A primeira tem a ver com a forma como os chilenos construíram, nos últimos 50 anos, a sua ideia de política e desenvolvimento. Se essa nova Constituição for aprovada, significa o triunfo do modelo neoliberal. Se for rejeitado, os cidadãos estariam exigindo um verdadeiro modelo de desenvolvimento social e político”, explicou a Opera Mundi o sociólogo chileno Pablo Camus, decano da Faculdade de Educação da Universidade de Antofagasta.
Camus aponta ainda outro ponto importante para o texto em questão a ser votado: “a classe política tem demonstrado a sua incapacidade de chegar a acordos. A opção contra vencer significaria desferir um golpe na classe política incapaz de resolver os problemas estruturais dos cidadãos”.
Criticado pelos articulares do primeiro texto – de caráter progressista e de esquerda – o novo projeto causaria um “retrocesso” em algumas áreas, fato que é equiparado ao golpe da ditadura militar de 1973, em que os valores da tradição chilena foram submetidos a um modelo econômico para o qual a ética, a proteção dos direitos da minoria política, das mulheres, das crianças e dos idosos, em termos de geração de condições mínimas como a de saúde e de pensões, foram retirados do pilar prioritário.
Percorrendo um caminho contrário, o Conselho Constitucional, responsável pela elaboração do projeto, entregou um modelo neoliberal focado no fortalecimento da propriedade privada e na precarização de empregos.
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Especialistas chilenos apontam ‘retrocessos’ nas propostas do novo projeto apresentado pelo Conselho Constitucional
“Qualquer cenário, seja com a Constituição de 1980 ou com esta nova, para os setores conservadores chilenos e os partidos de direita, é um ‘ganha-ganha’”, afirmou à reportagem Álvaro Duran, advogado chileno especialista em Direito Ambiental e Indígena, que avalia que o novo documento danificaria ainda mais a democracia chilena.
Para ele, esse momento está sendo posto em debate “restrições piores do que o que estava previsto na Constituição de 1980 que, ao longo do tempo, foram desfeitas no âmbito dos direitos das mulheres e em questões relacionadas com a um modelo de saúde e de previdência”.
Duran destaca uma das principais polêmicas em relação ao atual debate constitucional: a “proteção à vida do nascituro”. Para o advogado, o “aborto por via constitucional”, aprovado pelo Conselho formado por uma maioria de extrema direita, apresenta uma restrição ainda mais severa do que as normas que vigoram hoje.
Em 2017, a Lei do Aborto foi aprovada durante a gestão da então presidente Michelle Bachelet como um direito à mulher, possibilitando o uso dela em três ocasiões: gravidez com risco de vida para a gestante, inviabilidade do feto e gestação fruto de violência sexual. “O espectro constitucional atual se diferencia do primeiro [projeto rechaçado] com relação aos direitos humanos muito mais restritos”, afirmou Duran.
A insegurança em relação ao “aprovo” ou “rechaço” neste domingo paira sobre toda a população. As últimas pesquisas chilenas têm mostrado uma tendência voltada a mais um veto. No entanto, especialistas acreditam ser prematuro definir algum resultado para o plebiscito.
Há muitos anos, o Chile vive em uma crise social e política. As falhas identificadas em seu sistema neoliberal e, consequentemente, seu impacto na deterioração do tecido social e ético, ganhou dimensões ao longo do tempo. Nesse cenário, o sociólogo Camus avalia a necessidade de um modelo que coloque o “bem-estar social” no centro da discussão, englobando pautas voltadas a aposentadorias dignas, acesso à educação e saúde de qualidade.
“Se for rejeitado, teremos que abrir um debate profundo para maximizar as dimensões do bem-estar, seja para reformular o texto atual, seja para projetar outro texto constitucional”, disse ele após alertar os riscos da Carta de Pinochet que, com o possível rechaço do novo projeto, acabaria continuando em vigor. “Precisamos encerrar este capítulo. Mas não fechar olhando para o outro lado, embora já saibamos quão medíocre é a capacidade da classe política de ler as necessidades dos cidadãos e a forma de respondê-las”, afirmou a Opera Mundi.