A Constituição chilena, de 1980, foi aprovada em tempos de ditadura militar de Augusto Pinochet, um período marcado por tortura e perseguição, de quando não existiam registros eleitorais, muito menos liberdade de imprensa. Com o passar do tempo, o texto foi experimentando pequenas e sucessivas reformas que eliminaram alguns de seus traços mais autoritários.
O documento nunca deixou de ser uma ferramenta usada a favor das camadas elitistas do Chile. O “estallido social” foi o capítulo que provou a essência da democracia chilena, resultando na negociação da direita com a centro-esquerda para costurar uma reforma constitucional que fosse capaz de criar um canal institucional à crise que o país enfrentava.
O outubro de 2019 no país é lembrado mundialmente. Foi o mês em que os cidadãos decidiram manifestar sua insatisfação com os pés nas ruas, começando pelos estudantes que organizavam concentrações massivas no metrô. No entanto, cada pulo na catraca passou a simbolizar muito mais do que o aumento de 30 centavos na passagem do transporte público quando os protestos se expandiram e o próprio governo passou a fazer uso de sua ferramenta política: deixou escapar traços da repressão ditatorial ao acionar a polícia do Estado para punir os manifestantes.
O primeiro processo constituinte, que veio após esse processo de efervescência social, teve sua proposta apresentada em 2022, elaborada por uma convenção eleita com especialistas de orientação progressista, e foi submetido à sanção final no plebiscito de setembro de 2022, acabando rechaçado por mais de 60%.
Com isso, um segundo processo que culminou o plebiscito de 17 de dezembro de 2023.
“Na eleição dos novos conselheiros constitucionais, a extrema direita (Partido Republicano) obteve uma ampla maioria, a mesma que permitiu jogar fora o pré-projeto que havia sido elaborado por uma comissão de especialistas em proposta unânime”, afirmou a Opera Mundi o cientista político chileno Gabriel Gaspar, ex-subsecretário de Defesa do atual presidente Gabriel Boric, ao escancarar contradições que o texto denota.
Segundo ele, esse projeto contempla um “princípio de liberdade de eleição no quesito dos direitos”. “Ou seja, cada família poderia escolher um tipo de saúde, de educação, ou de desejos previdentes, seja estatal ou privado. A crítica que se formula é que, levando em consideração a desigualdade de renda no país, essa liberdade é relativa para a maioria e só valeria efetivamente para aqueles que possuem uma demanda solvente”, disse.
O ex-subsecretário de Defesa explica que, no quesito de representação, o documento diminui o número de parlamentares, o que muitos interpretam como “um mecanismo que favorece eleitoralmente a ala da direita”, além de propor questões como a redefinição das causas do aborto que incentivam o modelo conservador do país.
Twitter/Apra Chile
Nova Constituição tem diversos aspectos que colidem com avanços da democracia, diz ex-subsecretário de Defesa do Chile Gabriel Gaspar
“O projeto tem diversos aspectos que colidem diretamente com os avanços da tolerância, pluralismo e solidariedade, que têm se construído na democracia”, destacou Gaspar, sobre a Constituição a ser votada.
A maioria das pesquisas, até o momento, dão como vencedor o voto contra o texto, embora ainda prevaleça um ar de incerteza no plebiscito.
“O que o Chile quer? É uma boa pergunta, porque esse processo demonstra que as elites chilenas não têm sido capazes de oferecer para a maioria do país uma proposta ampla e de consenso”, afirmou o chileno ao ressaltar uma polarização social, reflexo da própria polarização política, de acordo com ele.
A Opera Mundi, Gaspar apontou que há “dos dois lados da população” uma predominância de “visões parciais intolerantes a outros pontos de vista”. “Em outras palavras, temos uma grande brecha no âmbito político chileno. Essa característica convive com outra: a desconfiança da maioria com relação às instituições do Congresso, do governo e dos partidos. A maioria dos cidadãos se definem hoje como independentes”, disse.
Em caso de uma nova rejeição, o presidente Boric praticamente descartou a possibilidade de um terceiro processo constituinte durante o seu mandato, mantendo portanto o texto atual que remonta à ditadura militar de Pinochet.
“São diversas as opiniões que aderem ao congelamento do processo até um tempo considerado prudente e à priorização de urgências socioeconômicas”, disse o cientista político, apontando que a pauta tem sido consideravelmente influente ao programa apresentado por Boric, no início da gestão, que indicava profundas reformas para o seu mandato.
Com isso, Gaspar avaliou que as “derrotas eleitorais” que o governo Boric tem sofrido pelo desgaste originado por diversos elementos, como a inexperiência e falta de rigidez entre seus partidos aliados, “têm levado a um presidencialismo de minorias, sem maioria no Congresso e na opinião pública”.