A insurreição popular que conta com diversos focos de protestos por todo o Equador contra o pacote econômico neoliberal do presidente Lenín Moreno entrou no seu 8º dia consecutivo nesta quinta-feira (10/10) e continua a sofrer com violenta repressão policial militar autorizada pelo governo com a implementação de um estado de exceção no país. Para a socióloga Carol Murillo, professora da Universidade Central do Equador, as medidas incluídas no chamado “paquetazo” de Moreno afetam diretamente não só os equatorianos pobres, mas também a população indígena.
Para Murillo, o movimento indígena, encabeçado pela Confederação Nacional Indígena do Equador (Conaie), toma a frente dos protestos “porque as medidas econômicas ordenadas por Moreno prejudicam a qualidade de vida dos equatorianos mais pobres, mas ainda muito mais dos indígenas. Eles não apenas representam a luta social mais ética do país, mas também são o sinônimo de resistência e identidade que mais respeitamos aqui”.
Em entrevista a Opera Mundi, a socióloga afirmou que o estado de exceção decretado por Moreno é equivalente a uma ditadura, na medida que o governo obriga que “os militares controlem o país e, sobretudo, os manifestantes em todo o território equatoriano”.
Murillo ainda destacou a participação do movimento dos indígenas na deposição de outros presidentes anteriormente no país – Lucio Gutiérrez, em 2005, Jamil Mahuad, em 2000, Abdalá Bucaram, em 1997 – e que “suas marchas desde as serras até o centro do país determinou que os protestos sociais de outros setores igualmente explorados pelo sistema capitalista terminassem com um grande êxito, ainda que muitas vezes os velhos grupos do poder que manejam o Estado se aproveitaram da luta indígena para aparentar certo pluralismo e democratização de sua participação política”.
A socióloga também criticou o Moreno pelo que chamou de “paranoia infinita” do mandatário ao acusar o ex-presidente Rafael Correa de ser o mentor da jornada de protestos contra as medidas neoliberais do governo. “Legado político [de Correa] e sua entrada nos setores mais humildes é tão forte que, na segunda-feira, dia 7 de outubro, à noite, em rede nacional, Moreno se atreveu a acusar Correa de ser o cérebro intelectual e material de todos os protestos sociais que vinham acontecendo no Equador. A paranoia de Moreno e de seus parceiros neoliberais é infinita”.
A professora condenou apoiadores do governo de Moreno que, pelas redes sociais, fazem declarações racistas contra os indígenas e xenófobas contra venezuelanos migrantes no país. “[Eles] despertaram o pior da comoção social neste momento”, disse.
Leia a entrevista na íntegra:
Opera Mundi: O movimento indígena está à frente desta jornada de protestos de 2019, mas também desempenhou um papel fundamental na derrubada de governos no passado. Quais são as semelhanças e diferenças entre outras experiências de protestos populares no Equador e essas manifestações contra Lenín Moreno?
Carol Murillo: Efetivamente, ao terminar o século 20 e começar o século 21, três presidentes foram depostos precisamente porque eles também enfrentaram protestos massivos dos cidadãos, dos sindicatos e do movimentos indígena quando anunciaram que seus governos tomariam medidas econômicas exigidas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). O que vale lembrar é que, nessas ocasiões, os presidentes foram retirados do poder, mas os vice-presidentes que assumiram aplicaram as medidas econômicas com pouquíssimas alterações. Nos três casos, as Forças Armadas tiveram uma participação muito ativa, o que demonstrava que, de alguma maneira, nossa democracia ainda tinha uma tutela militar em situações de crise social e política.
Hoje é diferente porque, desde a Constituição de 2008, fruto de um processo constituinte, as Forças Armadas não são estritamente ‘garantidoras’ da democracia, mas sim uma instituição que responde ao comando civil, ou seja, ao presidente. O lamentável é que o presidente Moreno recorreu a uma figura que está contemplada no nosso ordenamento jurídico, o estado de exceção, para que os militares controlem o país e, sobretudo, os manifestantes em todo o território equatoriano. Uma medida assim só é comparável com uma ditadura.
Qual é a relevância histórica que o movimento indígena representa para as lutas sociais no Equador?
O movimento indígena no Equador tem muitas décadas de luta e reivindicações sociais. Somente a partir da década de 1990 do século passado é que começaram a ter uma incidência política direta com a criação de um partido que os representava. Sua participação, então, fez parte da disputa social e política do país. Suas marchas desde as serras até o centro do país determinou que os protestos sociais de outros setores igualmente explorados pelo sistema capitalista terminassem com um grande êxito, ainda que muitas vezes os velhos grupos do poder que manejam o Estado se aproveitaram da luta indígena para aparentar certo pluralismo e democratização de sua participação política. Hoje eles são importantes e carregam a batuta dos protestos porque as medidas econômicas ordenadas por Moreno prejudicam a qualidade de vida dos equatorianos mais pobres, mas ainda muito mais dos indígenas. Eles não apenas representam a luta social mais ética do país, mas também são o sinônimo de resistência e identidade que mais respeitamos aqui.
Conaie/Reprodução
Para Murillo, medidas incluídas no ‘paquetazo’ de Moreno afetam diretamente não só os equatorianos pobres, mas também população indígena
Qual o balanço que a senhora faz dos protestos até então? O governo está derrotado?
Hoje [quarta-feira (09/10)], no Equador, se completam sete dias de paralisação. São distintas organizações sociais, sindicatos, estudantes, cidadãos em geral que estão nas ruas protestando contra o ‘paquetazo’ econômico, social e militar que o presidente Lenín Moreno ordenou. Após sete dias de paralisação, foram dois setores que definiram a situação até agora: o sindicato dos transportadores e o movimento indígena. Existem mais de mil protestos em todo o país que pedem a diminuição do preço da gasolina e o fim da reforma trabalhista que, na verdade, precariza o trabalho dos servidores públicos e privados. Hoje, o balanço é de que o governo que havia dito que não voltaria atrás nas suas medidas econômicas está sendo forçado a pensar em um diálogo e uma negociação com os dirigentes dos setores que hoje inundam as ruas da capital equatoriana, Quito, e outras localidades importantes.
A demanda de todos os grupos que integram os protestos contra o governo é que todas as medidas econômicas devem ser derrubadas. No entanto, o governo está relutante em fazê-lo e talvez nas negociações se ofereçam medidas paliativas direcionadas somente aos setores com os quais se negociar. Neste momento, os protestos seguem e existe muita dúvida sobre o que pode surgir dos diálogos. Mesmo assim, a greve dos trabalhadores começou hoje. O governo também está ‘negociando’ com eles. Por enquanto, não há nenhum pronunciamento oficial sobre isso. O que continua é o controle militar em todas as manifestações públicas e, quando os ânimos se acirram, os soldados não vacilam ao reprimir violentamente os manifestantes.
Podemos dizer que essa não é uma revolta apenas contra o aumento dos preços nos combustíveis, restrita a determinados setores da sociedade, mas sim um levante popular contra um modelo de governo?
Sem dúvida. O ‘paquetazo’ não inclui apenas a alta no preço dos combustíveis, mas também uma reforma trabalhista que nos faz retroceder anos nas conquistas dos direitos trabalhistas. A ideia que mais se usa para justificar a reforma é a ‘flexibilização trabalhista’, o que viola a Constituição que diz que ‘os direitos trabalhistas são irrevogáveis e intangíveis’. E isso inclui jornada delimitada, remuneração justa com um salário digno, liberdade de organização, contratação coletiva, [direito à] greve, pagamento de indenizações, participação nos lucros, e previdência pública e universal sem direito à privatização. É proibida de todas as formas a precarização como o trabalho intermitente e a terceirização de atividades próprias e habituais da empresa, como também a contratação por horas ou qualquer outro tipo que afete os direitos das pessoas trabalhadoras. A pretensão do governo equatoriano de cumprir esta exigência da receita econômica do FMI viola a Constituição sem nenhuma consideração pelo trabalhador. Portanto, os manifestantes que protestam contra a ‘flexibilização trabalhista’ também estão defendendo nosso marco constitucional.
Os manifestantes pedem a volta do ex-presidente Rafael Correa? Essa é uma pauta comum entre os movimentos?
Tem algo que você precisa saber. A figura do ex-presidente Rafael Correa é muito forte e influente no Equador, apesar da perseguição política e jurídica que o governo de Moreno e os aparatos de justiça (controlados pelo Executivo) realizam contra ele. Seu legado político e sua entrada nos setores mais humildes é tão forte que, na segunda-feira, dia 7 de outubro, à noite, em rede nacional, Moreno se atreveu a acusar Correa de ser o cérebro intelectual e material de todos os protestos sociais que vinham acontecendo no Equador. Inclusive afirmou que o vandalismo e a violência que ocorreram em alguns lugares eram obra direta de Correa e de seu ‘grupo’.
A paranoia de Moreno e de seus parceiros neoliberais é infinita. Tanto que seus seguidores nas redes sociais estão se dando ao luxo de construir um discurso racista – contra a grande marcha do movimento indígena – e xenófobo – contra os migrantes venezuelanos – que despertaram o pior da comoção social neste momento. Sem dúvidas, a intenção é acabar com a imagem do ex-presidente e, por consequência, com o que se convencionou chamar de ‘correísmo’, uma tendência política que manteve sua vigência, entre outras razões, porque Moreno foi o candidato que se pensava que poderia continuar o projeto da Revolução Cidadã, mas traiu o processo e se aliou com o pior da partidocracia da direita equatoriana. Pacto do qual tampouco escapam certos dirigentes indígenas, não as bases. O que está claro é que existem diferenças gigantescas entre as receitas neoliberais que hoje Moreno tenta implementar e a visão econômica que teve e tem o ex-presidente. Para resumir, Moreno quer um Estado pequeno e Correa apostou em um Estado com cabal visão social e econômica. Moreno prefere governar com as velhas plutocracias regionais internas e Correa governou, apesar delas, para as pessoas com menos recursos. Em simulações de cenários eleitorais recentes, se Correa fosse candidato ganharia as eleições. Moreno nem sequer apareceria na cédula eleitoral. A greve desta semana deixou claro quem é neoliberal e quem tem ideias no campo econômico para enfrentar a crise criada pelo próprio Moreno e seus parceiros neoliberais, racistas e xenófobos que, lamentavelmente, figuram hoje no Equador.