Após dias de aparente calma, a capital do Haiti, Porto Príncipe, voltou nesta quinta-feira (14/03) a registrar atos de violência, como saques e incêndios contra edifícios públicos e propriedades privadas, enquanto os haitianos aguardam a formação do Conselho de Transição que governará o país até a realização de novas eleições.
A ação dos grupos armados levou a uma nova ampliação do toque de recolher na região do Departamento do Oeste, onde se localiza Porto Príncipe, que está sob estado de emergência decretado entre os dias 7 de março e 3 de abril.
O toque de recolher – observado entre as 19h e as 5h no horário local –estava previsto para terminar nesta quinta-feira, mas será ampliado até o domingo. A medida foi decretada pelas autoridades a fim de “reestabelecer a ordem e o controle da situação”. Somente estão excluídos da medida as forças policiais, bombeiros, ambulâncias, funcionários da saúde e jornalistas devidamente identificados.
Um comunicado oficial dizia que as forças de segurança receberam autorização para utilizar todos os meios legais a seu alcance para impor o toque de recolher e prender os infratores. Durante o estado de emergência estão proibidas quaisquer manifestações em vias públicas.
Onda de ataques
Os ataques resultaram da ação de grupos armados que controlam cerca de 80% de Porto Príncipe. A Penitenciária Nacional, o maior presídio do país, sofreu um novo incêndio. Há treze dias,o local foi alvo de um ataque que resultou na fuga de cerca de 3.000 presos em uma ação orquestrada pela coalizão de gangues lideradas por Jimmy Chérizier, vulgo “Barbecue”, considerado um dos homens mais poderosos do Haiti. Entre os fugitivos estavam vários chefes de quadrilhas.
Nesta quinta, bandos armados saquearam e incendiaram a casa do chefe da Polícia Nacional, Frantz Elbé. Membros do grupo armado Kraze Baryè, liderado por Vithelhomme Innocent, também incendiaram várias casas em um bairro da capital, apesar dos esforços de uma tropa de elite da polícia em deter os criminosos.
Tiros foram disparados próximo ao aeroporto internacional de Porto Príncipe, onde estão sendo realizados trabalhos de reparos. O local está fechado desde o início do mês, após os danos causados pelos ataques dos grupos armados a uma série de pontos estratégicos na capital.
A Universidade Estatal do Haiti também relatou atos de vandalismo em sua Faculdade de Ciências, de onde um grupo de criminosos roubou televisores e placas fotovoltaicas, além de vários equipamentos de laboratório.
Em razão dos distúrbios, a União Europeia (UE) anunciou no início da semana a retirada de todo seu corpo diplomático do Haiti. A ONU anunciou a criação de uma ponte aérea entre o Haiti e a vizinha República Dominicana para permitir o envio de ajuda humanitária.
Conselho de Transição
A nova onda de distúrbios ocorre enquanto estão sendo finalizados os detalhes finais para a criação do Conselho Presidencial de Transição, que deverá ser instaurado após a designação de um novo primeiro-ministro, abrindo caminho para novas eleições presidenciais.
A decisão foi tomada na reunião convocada no início da semana pela Comunidade do Caribe (Caricom) na Jamaica, que contou com a presença de representantes locais, da ONU e de vários países, além do secretário de Estado americano, Antony Blinken.
O Conselho será composto por sete membros com direito a voto que representarão as principais forças políticas do país e o setor privado. Os integrantes terão a incumbência de eleger um primeiro-ministro interino e nomear um governo inclusivo.
Até o momento, seis das sete forças políticas representadas apresentaram à Caricom seus indicados para o colegiado. O primeiro-ministro haitiano, Ariel Henry, anunciou que renunciará ao cargo tão logo seja implementado o Conselho de Transição. O premiê, que está no poder desde o assassinato em 2021 do último presidente do Haiti, Jovenel Moïse, vinha sendo alvo de forte pressão interna e externa para deixar a chefia de governo.
Crianças encurraladas pela violência
Mais de 1 milhão de crianças e adolescentes estão encurralados pela violência no Haiti, vivendo em regiões controladas ou sob a influência dos grupos armados, o que representa um quarto da população infantil do país, alertou nesta quinta-feira a ONG Save the Children.
Segundo a entidade, nos últimos dois anos, ao menos 200 mil crianças tiveram que fugir de suas casas, 96% delas por causa da violência ou de ataques. “A situação piorou para as crianças, e muitas famílias foram forçadas a fugir de suas casas, e as que estão cercadas na região de Porto Príncipe estão lutando para lidar com a escassez de alimentos no país”, disse a entidade, em nota.
O relatório da Save the Children também adverte que essas crianças não podem frequentar as escolas e correm o risco de serem recrutadas por gangues e sofrerem violência sexual. Milhares de crianças, adolescentes e famílias ficaram sem os serviços básicos de saúde, sem acesso a hospitais e clínicas devido à insegurança.
A ONG alerta que cerca de 277 mil crianças com menos de cinco anos de idade estão enfrentando a desnutrição, sendo quase 40% delas vivem na região metropolitana de Porto Príncipe. A crise na capital impede o fornecimento de alimentos, de acordo com dados da Classificação Integrada das Fases de Segurança Alimentar (IPC).
A Save the Children pediu à comunidade internacional que aumente com urgência o financiamento humanitário e que todas as partes façam todo o possível para proteger as crianças e respeitar o direito internacional humanitário.