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Porque tenho apego com olhos, tratei de sacá-los como argumento para defender Adriano, no conselho de classe, que foi considerado um aluno relapso e fora das condições modelares de aprendizado.
Eu, que quase perdi um olho na infância e tive tantas crises de pálpebras inchadas e canais lacrimais entupidos por causa da blefarite tardiamente exibida em diagnóstico, sempre soube que Adriano tinha olhos de susto.
Da última vez que as amigas foram todas juntas ao samba, ficamos de conversa na frente do bar, fazendo nossas resenhas de sempre em meio a boas gargalhadas. Juntaram-se todas para me dar aulas de flerte, cada uma com uma poderosa cartilha, como se dali eu pudesse finalmente extrair as lições necessárias para escapar um pouco dessa timidez de braços fortes à qual devo agradecimentos por sentir-me, dentro dela e ela dentro de mim, em segurança.
A cada sugestão uma onda de risadas fura o ar pesado da madrugada. Carolina fala uma coisa que me chama atenção: diz que o segredo da sedução numa roda de samba está no olhar. Imediatamente respondo que para ela é fácil falar já que tem um par desses azuis bem fortes em formato vaporoso, de certo modo muito distante do Ocidente em que nos encurralaram. Todas concordam. Digo: eu não tenho os teus olhos, Carol.
E ela responde risonha, tentando explicar-se: eu também não tenho os meus olhos.
Para uma escritora essa frase é uma preciosidade por muitos motivos que nem sei exatamente esmiuçar. Quando Carolina fala isso eu meio que entendo, mesmo sem entender. Não que os de Carolina sejam um par de olhos autônomos, mas parece um pouco com aquela tese do espelho que eu conversava com a Maria Helena há algumas semanas: miro o espelho e sei que aquele é meu rosto, mas depois, não sei mais. O meu rosto grudado no meu rosto não se parece com algo que eu sou capaz de reconhecer, pertence mais a quem me vê do que a mim mesma.
Meu primo outro dia trouxe uma história lá dos confins do Marajó que uma mulher contou. Era sobre um rapaz que se enfiou no meio da mata e voltou com um dos olhos todo virado em amarelo manga. O olho dele ficou assim depois que ele viu o que ele viu. O que ele viu só ele viu, só ele pode contar. Foi isso que a mulher contou.
Daí me perguntei durante meses o que Adriano, por sua vez, teria testemunhado. Qual imagem tão impactante haveria de ser responsável por aquele estado perene de tensão.
Foi no final do semestre que descobri que o menino tinha perdido a mãe dias antes das aulas começarem. Uma das professoras me contou.
Na hora em que Adriano foi jogado sob torpezas na fogueira dos maus discípulos, lembrei-me de imediato da informação. Pedi a palavra, conclamei os colegas professores a tentarem entender sua desconcentração como resultado de um luto ainda não elaborado.
Porque Adriano, como já mencionei, tinha os olhos de quem recebe a notícia de que a mãe não sobreviveu à cirurgia feita do dia pra noite, a princípio um procedimento de baixíssimo risco, completamente forjado na esperança de ser uma intervenção estomacal corriqueira.
O médico sai preocupado, o pai de Adriano logo desconfia que algo desandou, fica sabendo num tapa que a mulher não resistiu, no momento não consegue pensar se foi erro humano ou força da deslealdade divina. Algumas horas depois chega em casa, junta os filhos na sala, diz que a partir de agora os três meninos precisam se tornar homens. Anuncia com a voz muito grave: a mãe de vocês morreu. Todos começam a chorar menos Adriano.
Ele não consegue saltar para o desespero como os irmãos. Ele não tem coragem de se lançar no abismo e morrer, ele não quer se tornar homem. Não é sua culpa, é difícil mesmo. Então fica lá, no fundo do medo, em perigo para sempre, atônito, aprisionado nos segundos em que se soube órfão, flutuando. O olhar aterrorizado fixo no rosto, uma dor que não sai e não deixa nada entrar, nem lição de matemática, nem lição de literatura, nem eu, nem ninguém. E é por isso mesmo que decido ficar ao seu lado.
Os professores não desistem de reprová-lo, sou vencida quase por unanimidade. O conselho é encerrado e eu permaneço sentada. Adriano não vai passar de ano. É o mesmo tempo parado de sempre. Faz muito calor. Adriano ainda flutua tão longe do meu alcance, cada vez mais distante, e mais distante, agora está pequenininho a esconder-se no horizonte, ainda posso vê-lo, ainda posso vê-lo, ainda posso vê-lo.
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