Em algumas rodas de escritores corre a anedota, dizem, de que existe um purgatório para as obras que caem em desuso e esquecimento editorial no país, e que Monteiro Lobato está sempre na boca do guichê quando alguém o salva com mais um novo projeto a partir da coleção de O Sítio do Pica-Pau Amarelo, então ele volta ao rabo da fila e fica mais algumas décadas marinando, não sem desconforto, o aguardo do próprio ostracismo.
Na última década, Monteiro Lobato viu autores e autoras negras, que estavam no purgatório, ressurgirem na vida literária brasileira, Maria Firmina dos Reis, o próprio Lima Barreto que ele mesmo editou nas primeiras décadas do século XX, Carolina Maria de Jesus, Dalcídio Jurandir, Lélia Gonzalez, dentre outros, e se assustou: como pode ser possível que esses, ainda poucos, negros sejam encorajadamente divulgados no contexto literário brasileiro? O que estará acontecendo no Brasil contemporâneo?
A campainha toca, Lobato é salvo novamente, dessa vez com uma reedição d’O Sítio na qual são suprimidas as falas racistas, Emília por exemplo nunca mais dirá que Tia Nastácia é negra por dentro mas branca fora, nunca mais dirá que é uma preta beiçuda ou até mesmo que lhe falta inteligência por causa da cor da pele.
Foi-se a violência racial contra Nastácia, mas por tabela, foi-se também Emília, afinal, o comportamento mais elogiado da boneca-gente é o que os críticos chamaram e chamam até hoje de atrevimento. Ora, esse atrevimento pode ser detectado através de suas ações preenchidas de ousadia e de suas palavras duras para com aqueles que preconizem alguma ordem de advertência ou de interdição aos seus desejos.
Nastácia, junto a Dona Benta, sua patroa, a quem a empregada alegremente chama de “Sinhá”, sugerem a organização cotidiana e os pilares da educação e do bem-estar das crianças no Sítio, são a gota de realidade em contraste à presença de sacis, da cuca e das mitologias clássicas, universo onde Emília reina absoluta. O que chama a atenção é o fato de que no questionamento da realidade Nastácia é alvo da conduta racista de Emília e não de sua atitude transgressora como gesto de modificação, aliás, talvez para Emília, Nastácia e os demais pretos do Sítio sejam os únicos elementos que devam permanecer na mesma posição, uma vez que são os sustentáculos materiais das aventuras possíveis dos netos da Sinhá que vêm da capital para curtir as férias maravilhosas propiciadas somente pelo cenário fantástico da zona rural.
Divulgação
Monteiro Lobato está sempre na boca do guichê quando alguém o salva com um novo projeto da coleção de O Sítio do Pica-Pau Amarelo
Na versão mais recente projetada pela bisneta de Monteiro Lobato, Cleo Monteiro Lobato, Emília surge moderada nas sentenças capazes de assujeitar seus interlocutores. A imagem de divulgação do projeto é no mínimo curiosa: Tia Nastácia, ao invés das roupas brancas da cozinheira que herdou as vestes das mucamas coloniais, usa turbante e colar de contas, como se associá-la a um figurino de linguagem étnico-religiosa resolvesse décadas de escravidão atualizada pela pena de Monteiro Lobato cravando continuamente o fenômeno semiótico de projeção do ser negro como existência diminuta, inferior e deletéria.
O leitor atento sabe que não é a supressão de gestos agressivos que faz com que a violência deixe de existir enquanto performance estruturante de uma narrativa, o mesmo pode-se dizer para a substituição de elementos que determinam a subjetividade ou a particularidade das personagens: o turbante novo de Nastácia não atenua nem elimina sua condição material no emprego doméstico.
Para além dos interesses comerciais que envolvem uma nova edição de Lobato, penso ser importante averiguar o uso do termo censura para delimitar a relação entre crítica, ideologia e o material em questão, O Sítio do Pica-Pau Amarelo.
Como a história nos ensina, no período da ditadura Vargas e da ditadura militar de 64 existiam órgãos censores atrelados ao Estado brasileiro (DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda e DCDP, Divisão de Censura de Diversões Públicas, por exemplo). Esses órgãos foram responsáveis pela intervenção sobre a produção cultural e a difusão de ideias através da mesma, não existem na política atual meios institucionalizados de veto à voz artística e intelectual, existem sim a burocracia e o fisiologismo que integram novas tecnologias de respaldo e anulação do que deve ou não ser exibido ao grande público, no entanto, esses desdobramentos não estão correlacionados a uma ação estatal, talvez inclusive nossa liberdade de expressão hoje seja mais pautada por empresas do que pelo Estado, por isso é tão perigoso valer-se de argumentos concernentes aos períodos de ditadura para desaprovar atividades críticas individuais, ou seja, opiniões sem poder institucional para instaurar uma ditadura ou um regime de silenciamentos.
Será mesmo que o desejo por uma outra literatura infanto-juvenil brasileira é um ato de opressão? Apresentar argumentos por uma outra linha editorial no país é o mesmo que censurar Monteiro Lobato?
Essas são questões que se impõem no debate sobre a reedição de uma das obras mais festejadas do autor e que infelizmente mais fere a dignidade de crianças, jovens e adultos negros leitores, portanto, de toda a cultura literária do país.