Imagine estar no meio de uma manifestação política multitudinária, a primeira em muitos anos, em plena capital de seu país. Imagine pessoas de todos os tipos com seus cartazes, seus slogans e suas demandas, exigindo um pouco mais de vida e dignidade não somente para si mesmo, senão para a sociedade em seu conjunto. Imagine pessoas se expressando, melhor dizendo, encarnando toda uma ecologia de afetos profundos (raiva, dor, amor, solidariedade) que se fecundam mutuamente e que fazem com que o ar que se respira tenha um sabor exótico nunca antes degustado, nunca antes nem sequer imaginado, um sabor indescritível com palavras, mas palpável com a alma, a poesia. Poesia em seu sentido literal de dar luz a algo que antes não existia. Novos corpos. Novas almas. E em um sentido muito mais profano, mas sem dúvida não menos importantes: novas possibilidades de estar no mundo, de sobreviver e de perdurar. Viver e durar. Vidurar. Queremos vidurar!
É isso que os milhares de corpos e almas poéticas entoam naquela sexta-feira de sol agoniante e esperança transbordante em Cabul, no Afeganistão. Queremos vidurar! Queremos viver durando e durar vivendo! Basta já de mortes prematuras e vidas abreviadas! Imagine agora dois jovens no meio desta bela multidão gritando estas mesmas palavras de ordem, com o mesmo fervor e, de repente, boom! Volto a pedir: imagine agora dois jovens no meio desta bela multidão gritando estas mesmas palavras de ordem, com o mesmo fervor e, de repente, boom! Os dois jovens, cada um carregado com vários explosivos, se explodiram, criando assim um cemitério de corpos, almas e sonhos despedaçados, literalmente despedaçados. Se acabou a poesia. Começa o salve-se quem puder. As pessoas correm por suas vidas. Cada uma por si mesma, sem piedade de nada. Os mais frágeis morrem pisoteados.
Ah, perdão. Peço desculpas. Me enganei. De fato, não foi assim. Imagine o que aconteceu de verdade. Os dois jovens se explodiram, despedaçando dezenas de pessoas. Sangue em todas partes. Os cânticos se convertem em um mar de gritos e prantos. Muita gente corre por sua vida (claro que sim), mas também há aqueles, e não são poucos, que imediatamente se dedicam a se organizar para atender as centenas de feridos e identificar os que acabaram de ser despedaçados. Vou contar em seguida. Imagine um grupo de aproximadamente 25 pessoas, sobreviventes de outro ataque suicida, o quinto em duas semanas, todos eles no mesmo bairro de Cabul. Estas 25 pessoas, logo depois de ter sobrevivido ao que posteriormente será recordado com uma das mais bárbaras atrocidades cometidas em 40 anos de guerra ininterrupta no país, e apesar de seu estado de choque e seu abismal sentimento de dor e raiva acompanhado por um profundo desejo de querer estar entre os mortos para, por fim, parar de viver morrendo, estas 25 pessoas se entregam agora a recolher e recompor os corpos desmembrados de seus companheiros de luta. Imagine uma jovem por volta dos vinte anos com a perna de uma criança nas mãos e a cabeça de sua melhor amiga na outra. Imagine um senhor de bengala chorando desconsoladamente enquanto levanta um tronco vestido com uma camisa do Messi. Alguns corpos se recompõem. A maioria não. Imagine o momento em que chegam os parentes das vítimas e as únicas coisas que recebem dos nossos 25 amigos são alguns dedos, braços, orelhas de seus entes queridos. Imagine que muitas das pessoas que perderam suas vidas lutando por um Afeganistão melhor para todos, independente de seu estado de composição, não serão nunca recebidos por ninguém, porque seus familiares vivem em algum lugar do campo e só saberão dos assassinatos dias ou semanas depois.
Mas esse pesadelo absurdo não termina aqui. Ainda temos que enterrar os mortos antes que o governo faça eles desaparecerem, manipulando o número de vítimas para, assim, dissimular sua absoluta falta de capacidade de satisfazer as necessidades básicas do povo afegão, começando pelo direito à vida e à integridade física e mental de cada um dos quase 35 milhões de habitantes do país. Temos menos de 24 horas. Imagine como dentro de poucos minutos, em plena noite, e apesar do desagregador desconsolo individual e coletivo, se forma uma espécie de junta de moradores de emergência para dividir e efetuar as tarefas mais urgentes, entre elas falar com as famílias identificadas para ver se estão de acordo com um enterro “político” (quer dizer, um enterro coletivo e comunitário ao invés de um individual) e definir onde enterrar os mortos (quer dizer, ou em um dos incontáveis cemitérios de bairro da cidade, ou ocupando, sim ocupando, um terreno de considerável valor simbólico para não permitir que se esqueçam as vítimas inocentes desta guerra sem fim). Além disso, temos que entrar em contato com os vários morda shoye que têm a difícil responsabilidade de preparar os cadáveres para a cerimônia funerária no dia seguinte. Imagine que às 22h30 te entregam volume sangrento composto por algo que apenas algumas horas antes era um ser humano de 21 anos, possivelmente um estudante de filosofia ou um vendedor de passarinhos, fã de cometas ou de cricket anglo-colonial e com sonhos simples, como um dia poder acordar sem medo de que ele ou alguém de sua família a caminho da padaria perca a vida pela mais recente brincadeira mortal do complexo industrial militar norte-americano ou por um pobre burro-bomba (ainda que não acredite, existem os burro-bombas, burritos insurgentes com nitroglicerina).
A propósito, desculpa que tenha começado a te tratar com informalidade, mas depois de ter te contado coisas tão íntimas e dolorosas, e graças a sua capacidade de escuta e leitura solidária, sinto que existe uma certa cumplicidade entre nós. Ah, obrigado pela sua presença. Dá muita força. Não pode imaginar quão solitário se sente alguém inundado por toda essa tristeza sufocante. Te agradeço muito. Será sempre bem-vindo aqui.
Voltando ao enterro. Se tomou a decisão de realizar um enterro político, ocupando um terreno simbólico na cidade. Imagine o dia seguinte, algumas centenas de pessoas, em sua maioria homens, reunidas a poucos minutos de distância do Parlamento nacional, em um monte que até ontem servia como lugar de pique-nique agora convertido em um espaço de resistência contra a cultura da morte e a impunidade no Afeganistão. Imagine como estas pessoas, todos armados com pás e picaretas, imbuídos de uma fúria imensa e agonia infinita, começam a cavar com suas próprias mãos, repito: começam a cavar com suas próprias mãos uma humilde vala comum, suficientemente grande para receber com lágrimas (é certo, as valas também choram) o que resta dos corpos de Fátima, Abdulláh e Tamaná, mas eternamente pequeno para acolher com ternura todos estes sonhos e anseios massacrados, todos esses talentos e inteligências aniquiladas, todos esses sorrisos e alegrias exterminadas. Os túmulos não foram feitos para dar refúgio aos sorrisos assassinados de um menino incinerado. O enterro termina com uma oração abafada por um tsunami de lamentos. O ar se torna irrespirável. Escutemos e sintamos.
Logo as pessoas voltam para casa (imagine como estarão as mulheres que, enquanto os outros cavaram, se dedicavam a preparar a casa para o fatiha, o velório, recitando continuamente passagens do Corão para que seus filhos descansem em paz). Imagine o cansaço que sentem estes escavadores humanos. Seus corpos fatigados, olhos vazios e corações derrotados. Sua impotência absoluta. Todos estamos à beira da loucura. Ninguém fala. Aflição sem cura. Morte por esgotamento. Existem elegias que somente se expressam com silêncios e olhares. Escutemos e sintamos. Nos servimos um chá. E, por incrível que pareça, os ânimos ressuscitam. As bocas cobram vida e formulam novos desejos. Retorna a poesia. É uma poesia muito modesta, uma poesia de coragem, uma poesia composta por várias gerações de afegãos que foram obrigados a viver uma vida sem futuro e sem impedimentos nunca deixaram de sonhar e lutar por um futuro com vida. Escutemos e sintamos.
P.S.: Os protestos continuam diariamente e de maneira multifacetada. Aqui ninguém se rende. Imagine se juntar à luta para juntos acabar com a guerra e construir a paz, com justiça e dignidade. Está afim?
Hjalmar Jorge Joffre-Eichhorn é membro do teatro do Oprimido boliviano-alemão. Trabalha no Afeganistão desde 2007, onde fundou, junto com um grupo de afegãos, a Afghanistan Human Rights and Democracy Organization (AHRDO), plataforma de teatro político e ação direta com sede em Cabul.
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Uma poesia de coragem, uma poesia composta por várias gerações que foram obrigadas a viver uma vida sem futuro e nunca deixaram de sonhar