Passava sempre na frente daquele grupo de homens que vive ao lado da pracinha. Eles normalmente levavam a tarde do lado direito da rua e à noite arrumavam suas coisas para dormir na outra calçada, diante de uma loja de artigos veterinários que fecha as portas às oito da noite. Era assim, o funcionamento da cidade sempre ordenou para eles a hora de dormir e de acordar, a hora de ter fome e a hora de comer.
Não preciso dizer aqui de ato de caridade nenhum ou das vezes em que me chamariam de assistencialista porque não posso com isso de ver pessoas passando frio ou pedindo dinheiro para um alimento, a nutrição do estômago ou da embriaguez – nunca liguei pra diferença moral das necessidades humanas.
Acontece que nossa relação se dava numa troca iniciada fundamentalmente com a percepção de que dividíamos o mesmo território. Muitas vezes eles eram as primeiras pessoas a quem, pela manhã, eu dava bom dia, uma vez que no prédio onde eu morava os vizinhos frequentemente não me respondiam nos corredores ou na longa viagem de elevador.
Os rapazes pegaram simpatia por mim e eu por eles, sem fantasias ou fetiches. Procuraram me dizer que estavam sempre cuidando de mim quando eu voltava tarde da noite para o caso da rua sem iluminação me oferecer algum perigo. Eu agradeci e, sim, passei a me sentir mais segura no bairro.
Um dia vi uma assistente social conversando com o mais velho deles, um senhor franzino que descobri chamar-se Giovani. Perguntei se não estava muito bem e ele me falou sobre a doença que não sabia o nome, mas sabia que tinha, me chamava de fia. Dizia fia isso, fia aquilo, fumando um cigarrinho.
No final do ano passado ele sumiu e eu perguntei aos amigos o que havia acontecido, disseram que a família o levara. No Natal, entretanto, na parte da noite quando fui falar com o grupo ele estava lá, me confessou que não queria nas festas ficar longe dos amigos. Parecia mais frágil do que o de costume e isso só ficou mais evidente no decorrer do ano, quando muitas vezes eu o vi dormindo em cima do colchão no meio do dia, ao lado dos companheiros que ouviam radinho, jogavam dominó, bebiam corote e outras coisas que toda gente faz na vida durante a caminhança das horas.
Depois eu me mudei e passei oito meses longe do bairro.
Hoje pela primeira vez reencontrei o grupo, eles ficaram animados e quiseram saber por onde eu andava. Contei minha história e nós festejamos o reencontro. Olhei para os lados e não vi o colchão e as coisas de Giovani, perguntei onde ele estava. Os três homens respiraram e me deram a notícia. Giovani morreu em outubro. Eu fiquei surpresa, embora meu coração já me preparasse para aquela possibilidade desde que eu ficara sabendo que não passava bem de saúde.
Contaram que ele se sentiu mal numa manhã e foi para a Santa Casa, ficou internado alguns dias, mas não resistiu. A família, disseram, foi muito bacana, conversou com eles, avisou onde seria o enterro, indicou o túmulo, confiou que eles arrumariam tudo que ele tinha na rua sem mexer em nada.
Os rapazes então ajeitaram o colchão, a mala com algumas roupas onde também havia dinheiro porque ele era aposentado.
Perceberam que eu fiquei triste e surpresa. Falaram que a notícia era ruim, mas que a minha volta ao bairro era uma notícia boa e que eu poderia continuar passando por ali que eles sempre estariam por perto. Nós nos despedimos aos sorrisos e eu saí caminhando para resolver minhas coisas.
Uma das coisas era esse texto. Era escrever Giovani. Fiquei a tarde toda pensando quão irrelevante é a função de uma escritora na carcaça dura e grossa dessa terra sem fundo em que vivemos. Tudo que eu posso fazer é trazer Giovani para a palavra, como fiz com todos os meus mortos. E assim, talvez, consiga inutilmente dizer meu adeus.
Se a linguagem ressuscita ou embalsama eu não sei, não quero saber. O que queria mesmo, com alguma humildade, se isso for possível para quem diz viver de arte, era prestar-lhe uma homenagem. Dizer: Giovani foi importante no mundo, teve amigos, teve família, teve pessoas que se importaram com ele e com as quais ele se importou. Não faz diferença falar isso, mas eu quero falar.
Preparo aqui esse quadro, alinhavo suas cores uma a uma, a imagem da calçada, o naco de vida que eu pude testemunhar, o cigarrinho, oi fia, a magreza, o sorriso de gengiva, com respeito e resignação. Entrego o quadro ao leitor, e digo-lhe: esse homem existiu, não porque eu escrevo sobre ele, mas pela centelha de vida e de narrativa que persiste, indelevelmente, em todas as esquinas – cheias de pedregulhos amaciados talvez por um pedaço de espuma, um papelão ou pelo cotidiano da experiência comunitária – desse país.
Tchau, Giovani, valeu.
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Vila Buarque, em São Paulo