O filme Você Não Estava Aqui, dirigido por Ken Loach, carrega no título uma ambivalência significativa: ao mesmo tempo em que se remete ao nome da empresa onde Ricky Turner se associa como trabalhador, diz respeito simbolicamente à ausência de Turner da própria vida depois que isso acontece. A empresa Você Não Estava Aqui tem o perfil das Rappi, Uber, IFood que tanto têm ocupado a memória de nossos celulares. Não se trata de um emprego como os tradicionais, é mais uma ponte entre o lucro e o trabalhador que ele mesmo pode gerar e gerenciar de acordo com sua potência e esforço pessoal. Com esse discurso, se propagou a sedução de milhares de desempregados em países quebrados financeiramente.
No último período de chuvas no sudeste brasileiro, a fotografia divulgada de um homem caminhando no meio de uma enchente para entregar sua mercadoria ou aquela outra imagem do cadeirante que leva sua mochila no colo no metrô de São Paulo nos desafiam a pensar sobre a ética da meritocracia e o fantasioso discurso que caracteriza a classe trabalhadora como inventiva e empreendedora.
Os anos 1990 brasileiros talvez tenham sido a década em que ocorreu com maior intensidade a difusão de um discurso do eu, isso é, a linguagem cotidiana começou a adquirir os contornos da política econômica neoliberal em que a privatização é mediação de trânsito entre a sociedade e a constituição subjetiva. O espírito de autorrealização, sucesso pessoal, desenvolvimento emocional (hoje abordados ao esgotamento pelo discurso de coaching, autocuidado, autogoverno, autonegócio e práticas de graus semelhantes) confluíram-se como uma afirmação da mentalidade egoica do modelo neoliberal brasileiro de economia. É nesse estado de gerenciamento próprio e de hiper-individualização, aparentemente saudável e emancipador, que o filme de Ken Loach tenta tocar com uma dura mão gelada.
Gostaria de pensar aqui sobre personagem Abby Turner, esposa de Ricky Turner, personagem que acompanhamos com mais intensidade ao longo da trama. A presença “coadjuvante” de Abby é fundamental para representar a falência da crença moderna de cuidadoria e para compreendermos a produção do falseado sentimento de que a classe trabalhadora tomou as rédeas de sua própria existência política e cultural. Abby faz trabalho diário de cuidadora de idosos e pessoas portadoras de deficiências físicas. Em certa altura do filme, ela deixa de estar com a família num momento de folga para ir trocar as fraldas de uma senhora que não pode andar e que pelo convívio constante acabou tornando-se sua amiga. Antes disso há um encontro bonito entre as duas em uma tarde de cuidadoria na qual Abby fala de seus problemas e vê a senhora contando a partir de fotografias antigas seu processo de aproximação com as lutas sociais. É simbólico que a concepção sindical ali representada pela velha mulher e suas fotos tenha por síntese, na última cena de participação da personagem no filme, a impossibilidade de deslocamento físico e de acesso à dignidade, uma vez que ela está completamente urinada e sozinha à espera de auxílio e, por assim dizer, solidariedade.
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Cena de ‘Você não estava aqui’, de Ken Loach
Enquanto Ricky é claramente explorado por Você Não Estava Aqui, sua esposa vai sofrendo pouco a pouco, por rebote, os efeitos de sua precarização. Nesse sentido, podemos discutir aqui nessa reflexão a divisão social do trabalho pela perspectiva de gênero e nos voltar à história para pensar em como as mulheres, no decorrer da trajetória de lutas e resistência da classe trabalhadora, tiveram um papel decisivo para que seus maridos pudessem conquistar direitos e organizar-se em coletividade para disputar com o patronato o controle de suas vidas. Ora, o que os empregos, ou quase empregos, de autonomia do trabalhador fizeram foi divulgar perversamente que esse controle, antes resultante de tantas disputas ideológicas, greves, debates, mortes em fábricas, agora nos seria dado sob os mecanismos do capital: caro trabalhador, você continua sendo vítima da exploração, mas agora passará a achar que é, além de explorado, também explorador.
Ao criar esse imaginário, as empresas estraçalham todas as possibilidades de reivindicação de direitos que na história capacitaram a classe trabalhadora a pelo menos conscientizar-se de que é parte fundante do processo e de que deve portanto apropriar-se dos meios de produção capitalistas. O jogo da subjetividade uma vez mais passa por um processo de monetização, invisível e escorregadio, insuflado pela necessidade econômica e pessoal, veiculada à lógica da autoestima, de podermos crer que nossas vidas tão insignificantes, sim, importam.
O que o diretor Ken Loach, o mesmo do denso Eu, Daniel Blake, nos diz no decorrer de Você não Estava Aqui é que a pressuposta liberdade do trabalho autônomo encerra-se como uma corda invisível, amarrada à forca na qual enfiamos nossas cabeças voluntariamente – isso tudo registrado pela economia de uma câmera documental, como se ali a textura da realidade a qual estamos sujeitos fosse o próprio filtro estético.
Apesar de o filme estar em um chave dramática, quase novelesca, dado esse que gerou diversas críticas a sua estética narrativa, há algo de trágico em Você Não Estava Aqui como também ocorre em Eu, Daniel Blake. Uma profecia autorrealizada se manifesta ao longo das cenas e das relações entranhadas do sistema de entregas, da família e das dinâmicas da cidade. Quando o pai de família pede para que a mãe venda o carro, a fim de dar entrada na compra da van de entregas, o espectador já pode sentir o calafrio da desmedida, o passo maior que as pernas que mais à frente se tornará propulsor de uma crise intransponível na qual a família é a expressão sociológica de um conjunto de pessoas econômica e politicamente exterminadas, pouco a pouco e em pirâmide (o homem, a mulher, os filhos), para que mais uma vez o capitalismo seja autorizado como um regime não apenas material, mas de pensamento, que goza de fortalecimento e legitimidade cada vez que a conjectura de sua superação nos vem como um problema já resolvido e não como um desafio a ser encarado.