Tenho uma história com o Fundo de Quintal e foi marcante. De 1988 a 1991, eu trabalhei em uma loja de discos chamada Chorus em um shopping em São Bernardo do Campo. Sim, loja de discos em shopping center, uma coisa careta. A diferença é que a Chorus era uma loja sem igual. E teve muito dos meus pitacos nessa diferença.
Um dos sócios da loja era o Marcio Bordon, o Fronha, um amigo, fã de música, em sociedade com sua irmã Laura. Eu conhecia o Márcio há uns anos, ele confiou no meu gosto e tino musicais, comercial nem tanto, eu me transformei no comprador oficial do loja.
A Chorus sempre teve um catálogo grandioso de música brasileira, jazz, soul, rock e os demais eteceteras da música. Nós éramos uma loja que tinha coisas que não se achava em outras lojas, dava orgulho trampar ali.
Discos de gravadoras independentes e mesmo o catálogo das gravadoras comerciais com coisas que não eram o praxe das prateleiras conservadoras.
Aos poucos, a Chorus foi criando um variado público de fãs de música, gente procurando coisas bacanas. Tudo isso embalado junto com os meus 23 anos de energia e alegria de viver.
A Chorus era eclética, quem trampava lá gostava de rock, eu e os outros meninos e meninas. Mas tinha espaço pra tudo, para o samba o espaço era garantido. No meio dos vários clientes, tinha um rapaz que deveria ter a idade que tenho hoje, 54, 55 anos, foi das pessoas que me marcou.
Com roupas austeras, óculos sisudos e discrição, ele chegava na loja calado e, geralmente, levava uma pérola do samba. Paulinho da Viola, Cartola, Wilson Moreira, Nelson Sargento, João Nogueira, Beth Carvalho, Nelson Cavaquinho, e outros pesos pesados.
O sujeito era calado, nunca soube o nome dele. Chegava, garimpava, escolhia o disco, chegava discreto no balcão, pagava, sorria e ia embora. Mas um dia ele assuntou, ficou uns cinco/dez minutos olhando discos, e colou no balcão de mãos vazias:
– Oh, menino, boa noite, por um acaso você tem o primeiro disco do Grupo Fundo Quintal que chama Samba é no Fundo de Quintal, de 1980?
Em 1989, o grupo Fundo de Quintal lançou o disco Cirando do Povo. Sucesso estourado, tocando em rádio, a rapaziada de Cacique de Ramos estava no auge. Era o samba de roda, com a melodia que gruda, a cadência, o coro e a musica no crescendo.
O disco de 1980, eu não tinha, era difícil de achar, não raro ainda, mas não se achava facilmente. Era de um selo médio, o RGE Discos, e pra comprar tinha que ir na distribuidora, coisa que nós fazíamos apenas em situações especiais. Fiquei chateado, não pude satisfazer o pedido do meu elegante e singelo cliente.
O meu camarada calado destravou a língua naquela noite, deu aula de samba, falou de samba de roda, de terreiro, citou nomes de compositores, de instrumentistas, era um erudito do samba, da música preta, um papo sem arrogância, conhecimento de quem gosta de compartilhar. São esses momentos que coroam a vida de vendedor de loja de discos, profissão quase extinta hoje, eu fui um cara de loja de discos e dos bons, sem modéstia inútil.
O rapaz do samba voltou na loja algumas vezes, das últimas vezes já comprava cds, pois aquela foi o tempo da transição do LP para o CD, 1989/1990. Falava pouco, dava recados curtos, era um fã de música, que economizava palavras, certamente para dar espaço para a maravilha da música no ar e nos seus ouvidos.
Lembrei dessa história, porque morreu o UBirany, o homem que colocou o repique de mão na história do samba, um dos pilares estéticos do som inovador do Grupo Fundo de Quintal, grupo que enriquece, renova, ilumina a musica do Brasil desde os anos de 1970 do século passado. O banjo, o cavaco, o violão e o repique de mão do Cacique de Ramos. A desgraça desse covid-19 cala um lírico do ritmo, um belo homem que iluminou milhares de rodas de samba pela vida.
Essa lembrança, essa história do rapaz calado que levou uma discografia maravilhosa na loja que eu trabalhava nos anos 80/90, cabe direitinho como homenagem à beleza dos homens elegantes, muitas vezes calados que fazem mais bonita a nossa história.
Em 2016, foi o cantor Mario Sergio, hoje o Ubirany, o mundo anoitece em tom menor. Gente elegante não se substitui.
Boa viagem, camarada!