São 10 mil, 20 mil, 30, 40 mil? Todo dia o número de mortes por covid-19 aumenta. São números, são estatísticas, é uma curva que sobe sem breque.
Números, números, eles sozinhos e isolados vão se naturalizando, ficam amortecidos e adormecidos, causam espécie, mas se misturam a outras notícias e acontecimentos do dia, pulverizam a indignação.
É quando os números se transformam em pessoas que o quadro muda. A dor chega, a perda se personifica. Os registros da memória se agregam, um dos números daqueles milhares se torna nome, corpo e história.
Eu trabalho num lugar onde entram centenas de pessoas por dia. Alguns passam rápido, outros ficam um pouco mais, mas há aqueles que se enredam, que fruem o lugar e além de ficar horas, se tornam contumazes. Assim é a biblioteca pública, sobretudo um lugar onde as pessoas podem ficar e ser quem são.
E assim, quem trabalha na biblioteca passa a se relacionar com esses contumazes. Há conflitos e desavenças por vezes, mas no geral é uma convivência comunitária com prazeres, convergências e toda a complexidade das relações.
É dessa forma que as pessoas que frequentam deixam de ser um número na biblioteca pública. Elas têm nome, personalidade, perfil. Não são um dado, são alguém com história, desejo e voz.
Altemar Alcantara/Semcom/Fotos Públicas
‘São números, são estatísticas, é uma curva que sobe sem breque’
Há alguns minutos, fiquei sabendo que uma frequentadora da biblioteca que trabalho faleceu de covid-19, a mãe também se foi pelo mesmo motivo. Alguém que vi e revi por anos, usando a biblioteca, exercendo seu direito de estar no espaço público.
Ela não é estatística, não é um dado, é história construída que nos coloca de frente com a gravidade da pandemia, das perdas, das famílias destroçadas, dos amores interrompidos, dos sorrisos que não mais inundarão as emoções compartilhadas.
É a vida que se esvai e deixa os vazios e silêncios a perseguir quem fica por aqui.
Há outras histórias que saem dos números, elas vão se juntando, se aproximando…
Não é necessário declinar nomes, nem dizer exatamente quem e quando. Não tenho autorização da família e dos amigos pra dizer quem é. Claro que importam o nome e a história, seria incoerente com o contraponto que fiz com os números e estatísticas. Porém, é mais respeitosa a discrição.
Só queria deixar o registro para quem quer que seja que ainda não entendeu o tamanho do vazio e das dores acumuladas que essa pandemia vai nos legar. Que estejamos unidos, atentos aos outros para tentar entender e transformar o resto do mundo e vida que nos restará.