“A pergunta não deveria ser por que ir a Cuba, mas por que não ir a Cuba? Fora daqui, há uma construção que praticamente nos nega informações sobre o país”, fala Emicida para o público.
Sua voz calma faz uma pausa enquanto ele espera que a tradutora repita suas respostas em espanhol. Sentados ao lado de Conceição Evaristo no estande do Brasil na 32ª Feira Internacional do Livro de Havana, os dois artistas não deixaram nenhum tema sem resposta: da criação literária até as memórias das lutas e histórias do povo negro passando pela atual situação da política cultural no Brasil. A palestra teve o título “E tudo pra Ontem”, uma das composições do rapper.
“Um convite como esse foi irrecusável. Não só por estar acompanhado de escritores que admiro, em um momento de reconstrução do Ministério da Cultura, que é uma instituição em que acredito. Mas também para fazer um movimento de relações exteriores com Cuba, que também acredito. Eu realmente creio que o embargo imposto a Cuba é uma das políticas mais covardes da história” reflete enquanto os aplausos se multiplicam no salão.
A Feira Internacional do Livro de Havana é um dos eventos culturais mais populares e aguardados em Cuba. Inaugurada no dia 15 de fevereiro, durante dez dias as ruas da capital caribenha receberam convidados de 45 países que participaram de apresentações de livros, conversas com autores, colóquios, cerimônias de entrega de prêmios, além de atividades musicais, filmes e peças teatrais.
Este ano, o Brasil foi o convidado de honra desta edição da feira. A delegação brasileira foi composta por mais de sessenta artistas, entre escritores, quadrinistas e músicos, escolhidos por uma curadoria tripartite formada por membros do Ministério, da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) e do Instituto Guimarães Rosa (IGR), unidade vinculada ao Ministério das Relações Exteriores (MRE).
O principal local de realização da Feira é a emblemática Fortaleza de San Carlos de La Cabaña. Um local privilegiado onde, ao entardecer, é possível assistir ao pôr do sol de Havana. Construída no século 18 como uma das fortalezas que defendiam a cidade contra ataques inimigos e saques piratas, La Cabaña foi declarada Patrimônio Mundial pela UNESCO, juntamente com a cidade velha de Havana, em 1982. No mesmo ano, foi realizada a primeira Feira Internacional do Livro de Havana.
Desde sua construção, La Cabaña tem sido o cenário de grandes eventos que marcaram a história. Considerado o Apóstolo da Pátria em Cuba, José Martí conheceu as celas de La Cabaña em sua juventude como prisioneiro político por sua atividade revolucionária. Martí foi um dos maiores poetas e escritores da cultura hispânica. Seu compromisso político permeou toda a sua obra e, em 1891, ele escreveu que “as trincheiras de ideias valem mais do que as trincheiras de pedra”. Uma ideia que Fidel repetia com frequência em seus discursos. Sem dúvida, a Feira Internacional do Livro de Havana faz parte da “trincheira de ideias” de que falava Martí.
Ao contrário da maioria das feiras de seu tipo, a Feria Intencionalidad del Libro de La Habana foi concebida como um espaço que facilita o acesso à cultura para toda a população. Desde o início, a Revolução Cubana considerou, como parte do projeto socialista que pretendia construir, que a cultura e a arte deveriam ser um direito inalienável de todas as pessoas, e não apenas daqueles que podem pagar para ter acesso a elas.
“Não dizemos às pessoas: 'Acreditem! Dizemos a eles: leiam!”, disse Fidel Castro em um famoso discurso em 1961, o mesmo ano em que foi declarado o caráter socialista da revolução. “E a Revolução diz ao povo: aprenda a ler e escrever, estude, informe-se, medite, observe, pense. Por quê? Porque esse é o caminho da verdade: fazer o povo raciocinar, fazer o povo analisar.”
A ideia surgiu no discurso da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, que na abertura da feira, destacando o trabalho que vem sendo realizado pelo Ministério da Cultura, disse que “estamos aprendendo que a leitura é um ato revolucionário. Por meio da leitura de livros e da literatura, podemos ter contato com o nosso mundo e com o mundo dos outros”.
Apesar das graves dificuldades econômicas da ilha, o Estado mantém uma política de fortes subsídios para a venda de livros, além de distribuição gratuita. Além disso, sob a mesma premissa, assim que o evento terminar na capital, a Feira será estendida a diferentes partes do país durante todo o mês de março para que aqueles que moram longe da capital também possam aproveitar o evento.
Prensa Latina – Feria Internacional del Libro de La Habana
“Embora as circunstâncias não sejam as melhores e não sejamos um dos países mais privilegiados do mundo, somos privilegiados nesse aspecto”, diz Melody Zamora, uma jovem estudante ao Brasil de Fato.
“Todos os anos viemos aqui para nos refugiar nos livros, na literatura, no mar maravilhoso. Porque este lugar é histórico e muitas pessoas vêm aqui exatamente para isso, para simplesmente apreciar a vista maravilhosa”.
Melody fala enquanto dezenas de livros de diversos tipos. A maioria deles são pequenos romances, muitos de autores cubanos, mas também há livros sobre musicologia e história da arte. Ela diz que, como todos os anos, veio à feira com seus amigos para passar o dia. A maioria deles está esperando para entrar em uma palestra sobre quadrinhos que ocorrerá horas depois, com a participação de Luisa de Souza, mais conhecida nas redes sociais como Ilustralu, a jovem autora brasileira do multipremiado Arlindo.
No início, Ilustralu sentencia o tom de toda a sua palestra: “esta não é uma história apenas para aqueles que podem pagar por ela”. Arlindo nasceu como uma webcomic, mas sua incrível popularidade fez com que pudesse ser publicada em formato de livro. No entanto, Ilustralu diz que é importante para ela que o livro esteja disponível na Internet para download gratuito.
Durante sua fala, um estudante de arte cubano a retrata em um desenho no papel. “As praças brasileiras têm o poder de mostrar que toda história particular é uma história universal”, diz ela em tom convicto, como se fosse um manifesto político.
Ao longo dos dias, as diferentes atividades que acontecem são uma oportunidade de intercâmbio cultural. O Brasil gera uma atração especial para o público cubano. “Crescemos assistindo as novelas brasileiras, talvez seja por isso”, ri uma mulher sentada sob uma árvore no jardim da fortaleza.
Apesar do tom de brincadeira, não há dúvida de que o gênero desempenhou um papel importante na cultura popular. Mas as conexões culturais também têm raízes profundas, até mesmo ancestrais, nas semelhanças entre os dois países na religiosidade popular, nos ritmos musicais e na semelhança dos pratos tradicionais, em que a presença da matriz africana é indelével.
Durante décadas, diferentes instituições culturais de ambos os países mantiveram uma relação estreita. Na história de ambos os países, foi somente após o golpe contra Dilma e depois o governo Bolsonaro que as relações diplomáticas entre os dois países foram interrompidas. Com o retorno de Lula à presidência, iniciou-se o trabalho de restabelecimento da relação que sempre atravessou os dois países. O convite de Cuba ao Brasil como convidado de honra é um passo nessa direção.
Durante a visita oficial do Brasil a Cuba, foi assinado um memorando de entendimento entre as Bibliotecas Nacionais dos dois países para promover a colaboração e o intercâmbio mútuos.
“A América Latina é uma grande e única configuração polifônica. Há muitas vozes que vibram nesta costa e as mesmas questões estão em jogo, por exemplo, a polifonia, o multilinguismo, a busca de raízes e a busca de justiça, para promover uma cultura de justiça em nossos países”, explica Marco Américo Lucchesi, poeta e romancista que atualmente preside a Biblioteca Nacional do Brasil, ao Brasil de Fato.
Os acordos culturais, ressalta Lucchesi, surgem dessa busca por justiça e intercâmbio. Ao mesmo tempo, ele destaca o papel de Cuba no estabelecimento do que ele chama de soft power na busca pela paz, com o programa “mais médicos” como exemplo.
A “trincheira de ideias” de que falava Martí faz parte das atuais lutas pela paz. Nesse caminho, o Brasil, por seu peso geopolítico, pode dar uma contribuição inestimável. Por um mundo onde haja mais livros e menos guerras, mais fantasias e menos sofrimento.
“Estar aqui me dá a sensação de estar de volta à adolescência, a um compromisso que precisa ser reconstruído e reestruturado o mais rápido possível”, diz Luchessi sorrindo, lembrando-se de suas primeiras leituras, ainda adolescente, sobre Cuba.
Essas leituras, marcadas pela ideia da Utopia, deram uma perspectiva da possibilidade de construir um mundo em que a condição humana estivesse no centro das preocupações sociais.
“Se pensarmos na história da utopia no Século 19, vemos que os poetas, os movimentos sociais e as pessoas interessadas na construção do futuro não estavam desunidos. Portanto, podemos pensar em um grande poeta que também é um profeta. Ele está olhando para o futuro e esse olhar para o futuro é, como se diz, 'tener saudade del futuro'”
“Um físico italiano chamado Carlo Rovelli se pergunta por que só nos lembramos do passado e não conseguimos nos lembrar do futuro?. É um belo exercício de imaginação. No dia em que conseguirmos nos lembrar desse futuro, estaremos construindo aquele futuro. As forças do campo popular, proféticas e poéticas, quando se unem, podem trazer essa lembrança do futuro para tornar a utopia mais próxima”.