Em 2019, o negócio de importação de fertilizantes pelo Brasil e exportação de milho para o Irã serviu de jogo de cena para a iniciante gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República estreitar seu alinhamento com o governo de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Brasil e Irã haviam assinado, em 2016, um acordo comercial. Por outro lado, o país persa acabava de ser novamente retaliado economicamente pelos Estados Unidos com diversas sanções devido ao suposto descumprimento de um acordo relacionado ao desenvolvimento de tecnologia sensível na área nuclear.
Diante deste cenário, uma empresa brasileira, a Eleva Química, que já comerciava com o Irã, achou por bem procurar o novo governo e comunicar que fazia negócios com o país do Oriente Médio, segundo mensagem trocada entre as partes interessadas. Quem recebeu a empresa brasileira que fazia o negócio foi o vice-presidente e hoje senador Hamilton Mourão.
O Irã é um dos maiores importadores de milho do Brasil e um dos mais importantes compradores de soja e carne bovina do país. De janeiro e junho de 2019, as exportações brasileiras para Teerã alcançaram cerca de US$ 1,3 bilhão, enquanto as exportações somavam US$ 26 milhões.
A Eleva Química, sediada em Blumenau (SC), negociava com o Irã desde a primeira década do século 21, conforme mostra troca de mensagens entre representantes da companhia e outras instituições a que Opera Mundi teve acesso.
Uma delas explicava bem o contexto das negociações de que a Eleva Química tomava parte, tendo como parceira comercial a iraniana Petroquímica Pardis.
“Desde 2008 nosso CEO Carlos Alberto Millnitz tem ido ao país persa a fim de buscar novos negócios em mais de uma dezena de viagens, tendo conseguido convencer aos diretores da Petroquímica Pardis a conceder crédito à Eleva Química, mandando navios de ureia a fim de receberem de volta milho como pagamento, tendo em vista que as sanções que recaem sobre eles são econômicas, unilaterais partindo apenas de um país no mundo, decidi me enquadrar nelas e fazer a coisa da forma que não firam as mesmas, portanto, não transferindo recursos com envio de dinheiro para eles, apenas produtos (ALIMENTOS)”, diz trecho de mensagem.
Havia, portanto, um caminho já pavimentado para a realização de negócios, reforçado por um acordo de ampliação de comércio entre Brasil e Irã assinado em 2016 pela então presidente Dilma Rousseff. As transações estavam se intensificando e, no fim de 2018, as exportações brasileiras para os persas aumentaram 78%, puxadas sobretudo por um produto do agronegócio, o milho em grãos.
Entenda a negociação:
- A Eleva importava ureia da Petroquímica Pardis, vendia o produto e com os recursos comprava milho para o Irã.
- A ação era legal no Brasil, mas o Irã estava sob embargo dos Estados Unidos de Donald Trump, o que levou a Petrobras a se recusar a abastecer navios envolvidos na operação em 2019.
- Em 2018, a Eleva procurou o vice-presidente eleito Hamilton Mourão para informá-lo de suas atividades.
- Além de Mourão, a Eleva informava o governo dos EUA, que impunham embargo sobre o Irã.
- Em 2020, a Eleva avisou os EUA de que ia reduzir o uso de navios de bandeira iraniana na triangulação comercial.
- Procurados por Opera Mundi, nem Eleva e o senador Hamilton Mourão se manifestaram até o fechamento desta edição.
Bolsonaro é eleito em outubro de 2018
Com a eleição de Bolsonaro em outubro de 2018, a Eleva avaliou que devia procurar representantes da nova gestão para “pedir autorização e comunicar” a realização de negócios com o Irã. Aparentemente, a ação não era necessária do ponto de vista legal, uma vez que o livre comércio entre Brasil e Irã já estava assegurado havia muito tempo pelos dois governos.
Ainda assim, a empresa foi recebida pelo gabinete de transição. O caminho para informar a atuação da empresa foi o então vice-presidente da República, que àquela altura comandava a transição do governo de Michel Temer para o de Jair Bolsonaro.
“Fui em dezembro de 2018, precisamente no dia 21/12, no gabinete do General Mourão, na transição do governo em Brasília no espaço Banco do Brasil, tive audiência com a equipe do general pedindo autorização e comunicando das intenções da Eleva Química em fazer negócios com o país Irã, naquele momento tinham diversos membros inclusive do comércio exterior com todos os dados envolvendo todos os negócios com aquele país em mãos, nos foi dado permissão para fazer negócios tendo em vista que o Brasil inclusive tem acordo de livre comércio com os persas assinado por Michel Temer como presidente, tendo o BNDES feito diversos investimentos inclusive”, revela mensagem de diretor da Eleva.
O contato entre a Eleva Química e Mourão ocorreu seis meses antes de um imbróglio envolvendo a empresa e a Petrobras que foi parar no Supremo Tribunal Federal.
À época vice-presidente, Hamilton Mourão recebeu a empresa brasileira que fazia o negócio com Irã (Wikimedia Commons)
Ureia, milho e combustível para navios
Em junho de 2019, a Petrobras decidiu não reabastecer navios usados pela Eleva Química no comércio com o Irã. A decisão decorreu de um outro elemento que acabou, apesar do acordo entre Brasil e Irã, colocando a operação comercial numa situação delicada: o embargo dos Estados Unidos ao país.
Desde a Revolução de 1979, o Irã tem sido o país mais sancionado pelos Estados Unidos e pela própria Organização das Nações Unidas (ONU), por diferentes motivos. Em novembro de 2018, os Estados Unidos de Trump retomaram as sanções contra o país, que haviam sido suspensas em 2016, após os acordos sobre o enriquecimento de urânio no país em 2015.
O atrito entre EUA e Irã pôs o Brasil e seu crescente comércio com o Oriente Médio no meio de uma crise internacional. Dois navios iranianos, Bavand e Termeh, da Sapid Shipping, ficaram atracados no Porto de Paranaguá, no Paraná. Estavam sem combustível para retornar ao porto de origem. E assim permaneceram por um mês e meio, até quase o final de julho de 2019.
A Petrobras alegava não poder abastecer os cargueiros do Irã porque o país da revolução islâmica estava sob embargo norte-americano. Para a estatal brasileira, vender combustível para os cargueiros deixava a empresa vulnerável a represálias do governo comando por Donald Trump, entre outros motivos porque parte de suas ações são negociadas na Bolsa de Nova York.
Navios iranianos Bavand e Termeh, da Sapid Shipping, ficaram atracados no Porto de Paranaguá. (Crédito: Claudio Neves/ Portos do Paraná)
“A Petrobras não forneceu combustível à empresa exportadora, pois os navios iranianos por ela contratados e a empresa iraniana proprietária dessas embarcações encontram-se sancionados pelos Estados Unidos e constam da lista de Specially Designated Nationals and Blocked Persons List (SDN) do Office of Foreign Assets Control (OFAC). Caso a Petrobras venha a abastecer esses navios, ficará sujeita ao risco de ser incluída na mesma lista, o que poderia ocasionar graves prejuízos à companhia. Cabe ressaltar que existem outras fornecedoras de combustível no país. A companhia mantém seu compromisso em atender a demanda de seus clientes, desde que observadas as normas aplicáveis e suas políticas de conformidade”, informava nota da companhia brasileira de petróleo em 2019.
Os navios ficaram fundeados no litoral paranaense de 9 de junho a 25 de julho. O cargueiro Bavand já estava carregado com 48 mil toneladas de milho. O Termeh ainda estava vazio, depois de ter descarregado a carga de ureia.
A pendenga foi parar na Justiça. O Supremo Tribunal Federal acabou liberando o fornecimento de combustível no fim de julho. Também era necessária uma solução rápida do próprio Ministério das Relações Exteriores para que a relação bilateral vantajosa para o Brasil não fosse prejudicada.
Bolsonaro: “existe esse problema, os EUA têm embargos levantados contra o Irã”
Sobre o imbróglio envolvendo a Petrobras, o ex-presidente Jair Bolsonaro chegou a se manifestar, segundo reportagens veiculadas naquele período: “existe esse problema, os EUA, de forma unilateral, pelo o que me consta, têm embargos levantados contra o Irã. As empresas brasileiras foram avisadas por nós desse problema e estão correndo risco neste sentido.”
Wikimedia Commons
Empresa Eleva Química procurou o governo eleito em 2018 para manter negócios com o país persa
O governo iraniano ameaçou suspender as importações do Brasil caso a estatal não liberasse o combustível para seus cargueiros. Depois de idas e vindas, o ex-chanceler de Bolsonaro, Ernesto Araújo, afirmou, também de acordo com reportagens veiculadas à época, que a Petrobras seguiria o que determinara o STF e abasteceria os navios iranianos, apesar do risco de a Petrobras ser punida pelos EUA.
“É um tema que está na Justiça. Nosso entendimento é o de que as partes envolvidas têm de seguir a decisão da Justiça. Nós temos chamado a atenção para o fato de que a Petrobras poderia estar sujeita a ter prejuízos em suas atividades nos Estados Unidos”, disse Araújo.
A Eleva Química, para garantir a triangulação, conseguiu uma liminar do Tribunal de Justiça do Paraná ordenando o abastecimento dos navios. Mas a decisão foi derrubada pelo então presidente do STF, Antônio Dias Toffoli. Finalmente, em 25 de julho, o próprio Toffoli resolveu o impasse e determinou que a Petrobras fizesse o abastecimento dos dois cargueiros iranianos com combustível brasileiro, mantendo a decisão proferida pelo TJ-PR.
Toffoli observou que os cargueiros foram contratados pela empresa brasileira Eleva, que não constava da lista de companhias sancionadas pelos EUA. O ministro do STF destacou ainda em sua decisão que, ao se negar a abastecer os navios, a Petrobras provocava prejuízos ao Brasil.
Era o fim de uma crise internacional que foi produzida e ampliada através de declarações de vários envolvidos. Com a decisão da Petrobras, o governo brasileiro sinalizou aos Estados Unidos de que se alinhava à política de criar dificuldades para o Irã, mas não a ponto de interromper os negócios em andamento.
Acompanhamento pelos EUA
O governo brasileiro, no entanto, não foi o único a acompanhar as negociações entre a Eleva Química e o Irã. A operação envolvendo ureia e milho era comunicada quase que instantaneamente ao governo dos Estados Unidos, através do adido do Tesouro norte-americano na América do Sul e funcionário da embaixada dos EUA no Brasil, Jai Nair, um ex-integrante da CIA.
Outra peça nessa negociação foi Patrick Kramer, integrante do FBI, o equivalente norte-americano da Polícia Federal brasileira. Sempre “na mais alta transparência possível”, de acordo com mensagens escritas por integrantes da corporação empresarial obtidas por Opera Mundi.
Ao contato, eram informados passos das operações comerciais em andamento, inclusive a movimentação financeira, conforme mostram mensagens de representantes da companhia no Brasil. “Desde o início da operação, mantemos contato constante com a embaixada americana, explicando todos nossos passos e toda nossa operação, inclusive, tivemos 5 navios com câmbio simbólico fechados no banco Confidence e 2 no banco Máxima”, registra uma mensagem da direção da Eleva.
Outro trecho da mensagem deixa ainda mais explícita a supervisão dos órgãos de inteligência do governo norte-americano: “mantenho contato com o adido do tesouro americano na América do Sul, Mr. Jai Nair que era da CIA, e com o Mr. Patrick Krammer (sic) que é do FBI, sempre na mais alta transparência possível com eles”.
Conversa entre Jai Nair e um executivo da operadora marítima em 27 de maio de 2020 mostra o acompanhamento pelo governo dos EUA dos negócios efetuados entre Irã e Brasil:
Jai – Obrigado pela atualização. Também quero verificar as naves Sapid. Seu parceiro ainda os usa ou mudou para outra empresa de transporte? Atenciosamente Jai.
Executivo – Sim, meu querido. vamos mudar Sapid ok. Está decidido e você pode informar seus colegas em Washington sobre.
Jai – Que bom ouvir isso. Você tem uma ideia de quando será usado o último Sapid enviado?
Funcionário da embaixada dos EUA no Brasil, Jai Nair acompanhava o episódio e mantinha contato com a empresa marítima (Créditos: reprodução)
Integrante do FBI, Patrick Kramer também aparece nas trocas de mensagens. (Créditos: reprodução)
Agenda de Diogo Mac Cord, secretário especial de Desestatização, Desinvestimento e Mercado do Ministério da Economia e homem de confiança do ex-ministro Paulo Guedes, mostra a realização de reunião com o novo conselheiro adjunto da Seção Econômica da Embaixada dos Estados Unidos, Jai Nair, no dia 14 de agosto de 2019, às 13h30, uma quarta-feira.
Tratada como “visita de cortesia”, a reunião contou ainda com a presença de Myrian Prado, do Ministério da Economia, e Thiemi Hayashi, assessora para temas de energia e infraestrutura econômica da Embaixada dos EUA.
Patrick Kramer é assistente jurídico do Departamento Federal de Investigação (FBI) no Brasil. De acordo com o The Intercept Brasil, Kramer atuou junto a investigadores brasileiros da Operação Lava Jato a partir do consulado dos Estados Unidos em São Paulo, em 2016.
Kramer, do setor de inteligência do FBI, teve atuação ainda na segunda Guerra do Golfo (2003-2011). De acordo com o site, Patrick Kramer “passou a ser supervisor do FBI em Washington, onde coordenou investigações sobre fraudes em seguros de saúde, tornando-se especialista no tema”.
Em 2016, o agente teria sido enviado para uma posição temporária durante seis meses como adido-adjunto no consulado de São Paulo, “facilitando e coordenando” temas para a Unidade de Corrupção Internacional do FBI chefiados por Ren McEachern. Neste cargo, ele “conduziu extensiva coordenação e relacionamento com a Polícia Federal brasileira, Ministério Público Federal, a Unidade de Corrupção e o Departamento de Justiça nort-americano temas de preocupação mútua no aprofundamento dos interesses do Brasil/EUA”, segundo sua descrição no LinkedIn. Era responsável pelo “gerenciamento, coordenação, implementação e execução de estratégias operacionais e investigativas sob responsabilidade do adido legal de Brasília”.
Sua passagem, destacou o The Intercept Brasil, “foi tão bem sucedida” que “ele retornou ao país, mas desta vez como adido legal-adjunto na embaixada em Brasília, cargo que ocupa até o momento. Kramer passou os primeiros meses fazendo contatos com agentes de segurança. Foi convidado a falar, por exemplo, no dia 29 de agosto de 2018 na inauguração da nova sede da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), no Lago Sul, em Brasília.
Menos bandeiras iranianas
Depois dos problemas originados em 2019, o comércio entre brasileiros e iranianos fluiu normalmente, conforme explica mensagem da Eleva. A solução foi simples:
“Os navios que vieram na sequência não tiveram mais os mesmos problemas pois a empresa de navegação aumentou a capacidade dos tanques de combustível e os navios passaram a poder voltar sem precisar abastecer, mesmo que tínhamos jurisprudência a nosso favor, essa medida foi tomada para apaziguar a operação, nem mesmo a Eleva levou em frente a ação a fim de cobrar danos da Petrobras, acreditamos que devemos ganhar dinheiro trabalhando e não judicialmente, toda essa situação trabalhou em prol da Eleva, o Brasil passou a conhecer a Eleva e passamos a vender toda a ureia antecipadamente, foi uma propaganda gratuita”.
Prossegue a explicação para evitar os problemas diplomáticos e sanções:
“Enfim, nosso governo informado, o país americano informado, Eleva e Pardis não sendo sancionadas, para a operação ser totalmente clean frente a todos, tomei a decisão de mudar os navios começo do ano, informando aos USA e a nosso governo que tomamos tal decisão e que nesse ano, apenas 4 navios serão de bandeira iraniana, o que aliviou significativamente a todos, estaremos operando apenas mais 2 navios em nossos portos e a partir de então, serão afretados navios com outras bandeiras”.
“Conforme acima, fica evidenciado que a não utilização dos navios de bandeira iraniana deixa-os completamente satisfeitos, e isso ocorrerá nos próximos mês (sic)”, complementa a troca de mensagens.
Em 2022, a ministra da Agricultura do governo Bolsonaro, Tereza Cristina, atualmente senadora pelo Estado do Mato Grosso do Sul, visitou Teerã para tratar da importação de ureia iraniana. Dados do Ministério da Economia mostram que em 2021 o Brasil importou 7,1 milhões de toneladas do produto, utilizado, entre outras coisas, para a produção de fertilizantes.
Outro lado
O ex-vice-presidente da República e atual senador pelo Rio Grande do Sul, Hamilton Mourão, e o CEO da Eleva, Carlos Alberto Millnitz, foram procurados pela reportagem de Opera Mundi por mais de uma vez e não se manifestaram até o fechamento da edição.
Aos dois foi perguntado:
1 – Por que a Eleva Química foi pedir permissão ao governo que se iniciava uma vez que já havia um acordo de livre comércio com o Irã?
2 – Essa solicitação se deu por causa da aproximação entre o novo governo brasileiro e o governo dos Estados Unidos liderado por Donald Trump?
3 – O novo governo brasileiro, a partir dessa audiência, noticiou o governo Trump sobre esses negócios (venda de ureia e compra de milho) com o Irã, que estava sob embargo dos EUA?
Opera Mundi mantém espaço aberto para ambos se manifestarem sobre o caso.
Mensagens apontam que CEO da Eleva, Carlos Alberto Millnitz, mantinha contato com autoridades do Irã na busca por acordos. (Reprodução)