Esta é a segunda parte do especial “A GM e a ditadura”, de Opera Mundi, composto de três reportagens. Leia também as outras reportagens:
– Parte 1: Perseguição, espionagem, ameaças e medo na General Motors durante a ditadura
– Parte 3: Metalúrgico demitido da GM por greve está desaparecido há 35 anos
Além do engajamento da General Motors do Brasil na fase mais repressora da ditadura militar, a empresa atuou no enfrentamento das grandes greves de metalúrgicos em suas unidades em São Caetano do Sul e São José dos Campos. As ações da direção da montadora através dos departamentos de segurança patrimonial e de relações humanas colaboraram com a polícia política e a repressão. Depoimentos ouvidos pela reportagem e também registrados nas Comissões da Verdade dos Metalúrgicos de São José dos Campos e da Câmara Municipal de São José dos Campos revelam as dificuldades enfrentadas pelos operários demitidos por participar de movimentos que reivindicavam direitos e melhores salários.
A montadora manteve uma atuação que combinava a postura favorável ao regime de exceção e a perseguição sistemática de trabalhadores considerados de oposição aos interesses da empresa e do regime militar. A tal ponto que houve funcionários que pensaram em tirar a própria vida.
“A perseguição era ferrenha. Fomos expulsos da GM [de São José dos Campos] em 25 de abril de 1985 logo depois da greve pelas 40 horas semanais. Saí desqualificado para o mercado”, conta Sebastião Penha Filho, hoje aos 72 anos. Ele trabalhou na empresa por três vezes nas décadas de 1970 e 1980. Era da ferramentaria. Após ter seu nome incluído na “lista suja”, não conseguiu outro emprego na cidade e região.
Leia mais da série “A GM e a ditadura”
Perseguição, espionagem, ameaças e medo na General Motors durante a ditadura
Penha Filho, que hoje mora no Rio de Janeiro, confessa que pensou em se matar porque a pressão que sofreu foi imensa e os efeitos da “lista suja” o impediram de obter recolocação profissional. “Depois que fui demitido passei por graves problemas. Havia emprego nas fábricas na região, mas ninguém pegava a gente. Olhavam a carteira de trabalho e viam a data de demissão e o local do último emprego. Tinha o nome naquela lista. Era automático, me lembro como se fosse hoje. Meu filho nasceu no período da greve. Aí danou. Num dia eu falei: vou me jogar daqui de cima do viaduto e acabar com tudo”, revela o operário.
O viaduto a que se refere está localizado sobre a rodovia Presidente Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Ele dá acesso à área onde fica o Centro Tecnológico da Aeronáutica (CTA). O operário e militante afirma que para sobreviver conseguia algum dinheiro fazendo bicos ou tocando música à noite. Penha Filho é baterista. “Ninguém quer ver o filho pedindo as coisas ou ter a mulher pronta para te tocar para a rua”, desabafa.
A vergonha em não conseguir um novo emprego está atrelada à conjuntura econômica da época, à oferta de postos de trabalho no Vale do Paraíba e aos impedimentos criados pela “lista suja” de operários que participaram de movimentos trabalhistas. Em meados da década de 1980, havia na região contratação em massa de trabalhadores.
“Mas os empregos eram negados para aqueles que tinham sido demitidos em processos de luta. Foi aí que começamos a perceber que havia uma lista com os nomes dos ativistas do movimento operário”, explica Luiz Carlos Prates, o “Mancha”, então diretor do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos. Mancha afirma que os militantes passavam por constrangimentos porque não conseguiam comprovar a existência da “lista suja” e, ao mesmo tempo, sofriam com a existência dessa lista.
“A gente era chamado de vagabundo. Diziam que estava fazendo corpo mole na procura por emprego”, desabafa Penha Filho. A reparação a ele e aos outros 32 integrantes da “lista suja” só ocorreu em 2008, quando o Ministério da Justiça concedeu anistia política a todos os que foram perseguidos após a greve de 1985.
Delegado do trabalho
Um telegrama enviado pelo delegado regional do trabalho de São Paulo, Aluysio Simões de Campos, para a direção geral de polícia do DOPS, em 26 de março de 1974, deixa clara a combinação existente entre a General Motors e os agentes da repressão. Diz o telex:
“… acabo de manter contato chefe divisão Santo André VG que manteve contato dr. Alcântara VG gerente Relações Trabalhistas General Motors VG que esclareceu terem sido efetuadas 400 dispensas de empregados…”
A mesma delegacia do trabalho, em 5 de setembro de 1974, enviou outro telegrama para o DOPS, endereçado ao então diretor geral Lúcio Vieira sob a rubrica “Confidencial – urgente”. A mensagem aponta na primeira frase “acabo de receber General Motors VG seguinte informação:”
“Paralização (sic) de trabalho na GMB. Dia 28/8 – uma pequena turma de tratoristas, no período da tarde. Dia 30/8 – aas 11 horas, uma turma de nosso Depto.3 – funilaria. Aas 14.30 todo o depto. de prensas e também os pintores de geladeira”.
Paralelamente aos carros, nos anos 1950 e 1970 a GM produzia também baterias, aparelhos de ar condicionado e até geladeiras da marca Frigidaire.
O telegrama enviado ao DOPS descreve ainda as reivindicações dos trabalhadores, comentários da direção da GM sobre o movimento grevista e as atitudes tomadas pela montadora. Ressalta que a direção da empresa exigiu o retorno imediato ao trabalho, emitiu aviso à supervisão dizendo que as “paralisações são ilegais e todos os empregados deve (sic) estar cientes disso PTVG que tais fatos não podem mais ocorrer”.
O então delegado chefe do sistema integrado do DOPS paulista, Romeu Tuma, recebeu em 30 de maio de 1975 o ofício nº 683/75, expedido pelo delegado assistente da Delegacia Seccional de Polícia do ABCD, Nivaldo José Squilacci Leme. No documento constam os nomes dos trabalhadores que participaram da paralisação no setor de pintura da GM no dia 20 de maio daquele ano. A lista contém oito nomes, endereços, filiação e outros dados enviados pela empresa. Há grifo manuscrito sobre as cinco pessoas demitidas.
Essa mesma relação de grevistas foi usada em comunicado confidencial expedido pelo Exército. Trata-se da Informação nº 103/75 – 4º BIS, da 2ª Divisão do Exército, 11º Batalhão de Infantaria Blindada Batalhão Raposo Tavares, subordinado ao Comando Militar do Sudeste.
Chefe do RH
Na região do Vale do Paraíba, cidade de São José dos Campos, a General Motors também mantinha colaboração política e material com o regime militar na perseguição ao movimento operário.
Houve forte colaboração inclusive durante a greve de 1985, que reivindicava reajuste salarial e redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais. O movimento, iniciado em 11 de abril de 1985, foi deflagrado em empresas de todo estado de São Paulo. Em São José dos Campos houve ocupação das instalações da GM, com pressão política e da Polícia Militar, que cercou a fábrica e os grevistas.
Pedro Marin / Opera Mundi
Estrutura da General Motors em fábrica de São Caetano do Sul, na Grande São Paulo
O movimento em São Paulo foi encerrado no dia 27 de abril depois de muita negociação. Mas em São José dos Campos a greve foi estendida por mais uma semana, até 9 de maio. Na volta ao trabalho, os operários da GM enfrentaram nova repressão e perseguição. Cerca de 400 foram demitidos e 33 deles processados criminalmente. Tiveram seus nomes incluídos na “lista suja” enviada pela GM para o Serviço Nacional de Inteligência (SNI) e empresas da região.
Paulo Francisco Moreira, então diretor de Recursos Humanos da empresa em São José dos Campos, confirmou para a Comissão da Verdade da cidade a existência de documentos confidenciais produzidos pela “comunidade de informação” no período entre 16 de julho de 1983 e 27 de setembro de 1985 com dados repassados pela GM.
De acordo com o relatório final da Comissão da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, são documentos, relatórios e informes originados na Seção de Informação da Escola de Especialistas de Aeronáutica (EEAer), e em menor parte na Agência de Informação do Centro Técnico Aeroespacial (CTA), ambas ligadas ao Ministério da Aeronáutica.
Paulo Francisco Moreira trabalhou de 1964 a 2006 na General Motors do Brasil. Iniciou em 1977 na cidade de São Paulo, no Departamento Pessoal, como diretor de RH. E, a partir de 1985, foi para São José dos Campos, onde ficou por 20 anos na mesma função.
Com relação à greve dos trabalhadores em 1985, a Comissão da Verdade do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos destaca:
“O Delegado Titular de Polícia Alfredo Augusto, da Assistência Policial da DERIN – Delegacia Regional de Polícia de São Paulo Interior –, assumiu a responsabilidade de escrever um relatório sobre os processos contra os 33 trabalhadores demitidos na greve com ocupação de fábrica da General Motors de 1985. O ‘Relatório’ é constituído fundamentalmente por três partes: um relatório de quinze folhas contendo os resultados gerais preliminares de sua investigação; a transcrição de dois depoimentos de trabalhadores que participaram da mobilização; e, o que mais nos interessa, 27 fichas funcionais de trabalhadores da GM. Essas últimas nos atraíram na medida em que as fichas recolhidas pelo delegado não eram outras senão as que a própria empresa produzia no ato da contratação de seus empregados, e mantinha em seus arquivos particulares.”
A troca de informações sobre ativistas e demitidos políticos servia também de subsídio para a elaboração das chamadas “listas sujas”. Isso tornava ainda mais difícil aos ativistas e militantes de esquerda encontrarem um novo emprego. Mas além da lista, havia outros mecanismos para impedir a contratação e recolocação profissional dos ativistas demitidos. Um deles foi a exigência do chamado “atestado ideológico” expedido pelo DOPS.
O ex-diretor de RH da GM de São José dos Campos descreveu para a Comissão da Verdade como a montadora identificava os trabalhadores que participaram do movimento grevista de 1985, para a posterior demissão dos mesmos.
“O RH não conhecia [todos os trabalhadores]. Não tinha essa intimidade com as pessoas. Então foi pedido pela supervisão que as áreas de fábrica que conseguisse [sic] identificar (…) as pessoas que participaram, as quais tinham uma história real, essa coisa toda. (…) Que fez barricada, que fez alguma coisa. E saíram uma relação de nomes [sic], que desde o começo eu sabia que não podia ser perfeita, porque essas coisas não são cem por cento real. (…) E houve algumas pessoas, 33, eu me lembro exatamente que identificou esses 33 que não só atuaram, mas tinham uma liderança nessa atuação”, disse o profissional na Comissão da Verdade.
O sociólogo Moacyr Pinto Silva, que durante o movimento de 1985 era militante e trabalhador na unidade de São José dos Campos da GM, relata que havia agentes da repressão infiltrados além dos limites da fábrica. “Ficavam no meio da peãozada também no clube [da GM] e até na casa dos trabalhadores. Me lembro também do diretor da GM (de Relações Industriais), Herbert Brener, que era suíço e ficava nos provocando. Ele disse bem assim: ‘vai morrer gente, faz parte da luta de classes’”. Moacyr é um dos 33 processados criminalmente por causa da greve de 1985. Brener é falecido.
Tiago Nogueira, um dos líderes da greve de 1985 na GM de São Caetano do Sul, conta que o coronel da Aeronáutica Evaldo Herbert Sirin comandava a segurança dentro da fábrica, e agia em parceria com Antônio Cursino de Alcântara, gerente de relações do trabalho da GM do Brasil. Cabia a Alcântara e Sirin comunicar aos órgãos de repressão tudo o que acontecia no chão da fábrica, observa Nogueira. Ele também relata a existência de agentes infiltrados no meio dos operários.
“Um dia identificamos um desses infiltrados. A gente desconfiava muito das pessoas. Sabíamos que era pessoal da polícia. O Sirin ficava louco com nossas estratégias de paralisação. Mas o Alcântara era mais polido, e também [era] o elo com os serviços de informação”, afirma Nogueira.
De acordo com Arlindo Pereira Dias, conhecido como Xexéu, ativista sindical e eleito para a CIPA da GM na época, Sirin colocou uma pessoa para seguir seus passos dentro da fábrica em São Caetano durante o período em que ele estivesse no local. “O Sirin disse: Xexéu, esse senhor vai te acompanhar durante o dia. E realmente ele me acompanhava desde que entrava até a hora que saia”, conta hoje, aos 71 anos e morando em Brasília.
O homem que atuava como sombra de Xexéu dentro da fábrica, lembra o ex-metalúrgico, fez chantagem para que ele deixasse o ativismo sindical para não ser demitido. “A mesma pessoa que andava comigo na fábrica me fez uma proposta. Arrumaria uma vaga para mim no escritório da GM que ficava na avenida Paulista para eu sair da fábrica em São Caetano e não dar sequência ao trabalho sindical na CUT. Ele disse que seria melhor para mim. Não aceitei, e paguei muito caro. Perdi o emprego, fui colocado na ‘lista suja’ e não consegui mais emprego nas fábricas em São Paulo”, explica Xexéu.
A General Motors do Brasil nega envolvimento e colaboração com o governo militar durante a ditadura. “A GM é uma companhia que defende a democracia, respeita a legislação nos países onde atua e segue rígidas regras de compliance em todo o mundo. Não há nenhum histórico de que a empresa tenha se envolvido nas atividades relacionadas durante o período da ditadura militar no Brasil. Reiteramos nosso compromisso com os ideais democráticos e refletimos esses valores em todas as nossas operações”, informa a nota da assessoria da montadora.