Após as festas de fim de ano, o Peru retomou a dinâmica de crise política instalado desde o começo de dezembro de 2022. A destituição de Pedro Castillo e sua substituição por Dina Boluarte causou revolta em parte da sociedade, especialmente das organizações civis, que consideram o novo governo ilegítimo e que a melhor solução para a crise seria a realização de novas eleições gerais [para escolher o novo presidente e a totalidade das vagas do Congresso unicameral] já no primeiro semestre de 2023.
Essa mobilização em favor de novas eleições se incrementou no dia 10 de dezembro, a primeira vez em que os protestos aconteceram simultaneamente em diferentes regiões do país.
Também foi a primeira jornada em que o governo reagiu às manifestações com um aparato de repressão policial, e produziu as três primeiras mortes. Segundo a Coordenadora Nacional de Direitos Humanos do Peru (CNDDHH), o ano terminou com um saldo maior, de 32 mortes de civis provocadas ação da polícia peruana.
Teoria dos dois golpes
Opera Mundi conversou com o doutor peruano em economia e relações internacionais Nilo Meza sobre o presente e o futuro de um Peru mergulhado em mais uma crise política. O cenário político atual do país foi desencadeado, segundo as palavras do acadêmico, por “dois golpes de Estado consecutivos, um fracassado e um bem sucedido”.
A destituição de Castillo foi consumada por decisão do Congresso, que votou favoravelmente uma moção de vacância, processo similar ao do impeachment no Brasil. Nesse mesmo dia que aconteceu tal votação, o então presidente tentou jogar uma última cartada para se manter no poder, decretando a dissolução do Parlamento e a imposição de um governo de exceção.
A medida não foi acatada por nenhuma instituição, e acabou levando Castillo à prisão, acusado de atentado contra a democracia. Segundo Meza e sua teoria, esse erro do ex-presidente foi o golpe de Estado fracassado que iniciou a crise atual.
“Castillo sempre foi um presidente encurralado, sitiado pelas forças políticas tradicionais do Peru, que servem a uma elite econômica classista e racista. Em seus 16 meses de governo, sofreu uma hostilidade incessante e com fortes elementos racistas por parte desses setores políticos e da imprensa hegemônica. O simples fato de ele ter ganho as eleições de 2021 sendo um simples professor de colégio primário desatou um ódio muito maior que o normalmente demonstrado por essa elite. E esse ódio se agudizou nos últimos três meses do ano passado. Para piorar, temos o agravante da falta de experiência do presidente, que não ajudava a lidar de melhor forma com esses ataques”, comentou.
A tentativa de dissolver o Congresso, ainda segundo o acadêmico, é a maior prova da incapacidade política de Castillo para enfrentar os ataques da direita. “No fim das contas, não se pode chamar essas medidas de outra coisa que não de ‘golpe de Estado’. Mas também é difícil chamar Castillo de ‘golpista’, porque um golpista de verdade planeja, prepara o seu movimento e realiza, pode até fracassar na consumação do seu plano, mas há um plano”, disse.
Para ele, a medida do ex-presidente foi uma “jogada completamente desesperada”, que não possuía “planejamento e sem noção das consequências”. A ação de Castillo deu aos opositores o que Meza aponta como os “argumentos necessários para executar sua vingança” contra ele, contando com “todos os ingredientes que uma elite racista não abre mão quando tem a chance de contra-atacar”,
Ademais, o professor, que também é membro do comitê político do partido Convergência Socialista, assegura que a decisão de Castillo de dissolver o Congresso “foi baseada em uma leitura equivocada do cenário político”.
“A oposição não tinha os 87 votos necessários para aprovar a destituição naquele dia [7 de dezembro de 2022]. Se ele deixasse a sessão ocorrer, sairia fortalecido com uma derrota de uma tentativa golpista por parte da direita. Sua atitude impensada levou boa parte dos parlamentares progressistas, que iriam rechaçar a destituição a não terem opção senão mudar de parecer”, explica Meza.
O golpe bem sucedido
Após a queda de Castillo, a então vice-presidente Dina Boluarte assumiu o poder e se tornou a primeira mulher a governar o Peru. Apesar dessa transição ser constitucionalmente correta, o professor Meza considera que esse foi o desfecho de outro golpe de Estado, mas, dessa vez, um que teve sucesso.
Reprodução/ @presidenciaperu
Boluarte assumiu a Presidência peruana após a destituição de Castillo, em dezembro
“A acusação contra Castillo para moção de vacância era em si uma tentativa de golpe de Estado, que não tinha sustentação jurídica, mas buscava reunir votos para derrubar o presidente mesmo assim. E não tinha os votos suficientes, por isso o erro de Castillo [ao tentar dissolver o Congresso] é tão grosseiro, porque acaba viabilizando esse golpe, tornando-o inclusive aceitável perante a opinião pública”, afirmou.
No entanto, o acadêmico também acredita que esta nova crise política peruana também expôs o racismo da classe dirigente peruana, o que acrescenta à falta de legitimidade com que a cidadania vê aqueles que se instalaram no poder depois da transição.
“Ainda há grupos que defendem o retorno de Castillo, mesmo que não sejam majoritários, mas aqueles que antes o apoiavam e agora já não o fazem, porque seu último ato como presidente é indefensável. Mesmo esses percebem que todo o movimento que levou à queda de Castillo vinha sendo engendrado há muito tempo e era baseado nos ódios dessa elite peruana contra os negros, contra as pessoas do interior do país. Por isso nós vemos que as manifestações fora de Lima são tão ou até mais intensas, proporcionalmente falando, do que as realizadas na capital”, esclarece.
O papel dos Estados Unidos
Ainda à reportagem, Meza falou sobre suposto envolvimento dos Estados Unidos nas ações promovidas pelo setor que era opositor a Castillo e que agora apoia o governo Boluarte.
Ele relata que os norte-americanos precisavam urgentemente frear o avanço de projetos que o governo de Castillo pensava em promover junto com a China: o Porto de Chancay, que já começou a ser construído, e que pretende ser o maior da América Latina no Oceano Pacífico; e o do trem de alta velocidade ligando Tacna [cidade próxima à fronteira com o Chile] e Tumbes [próxima à fronteira com o Equador], que foi anunciado em setembro por Castillo, mas ainda não saiu do papel.
“Para que os Estados Unidos possam manter sua hegemonia na América do Sul, contra uma China que vem crescendo cada vez mais, era preciso mudar de governo antes que esses dois projetos tivessem sucesso. Para que a construção do Porto de Chancay seja interrompida ou talvez até abandonada, e para que o trem de alta velocidade sequer seja iniciado”, disse.
Meza também observa que o governo de Boluarte mostra uma “guinada bem clara com relação a isso”, já que, de acordo com ele, a agenda da presidente “aplica abertamente as receitas dos think tanks norte-americanos, além de manter uma sustentação política empresarial-militar, o que explica os elementos fascistas que demonstra especialmente na forma como lida com as manifestações populares”.
Futuro das manifestações e do sistema político
O futuro do Peru, segundo Meza, dependerá de como o debate sobre a possibilidade de se antecipar as eleições gerais irá evoluir nas próximas semanas.
Ele lembra que a pressão popular já fez Boluarte “recuar duas vezes”. “Quando assumiu, ela disse firmemente que seguiria no cargo até o final do mandato, em 2026. Recuou dois dias depois e apresentou um projeto de eleições em abril de 2024, que tampouco foi aceito pela maioria da opinião pública. Essa ideia foi abraçada pela classe política, mas a própria presidente agora fala em eleições para dezembro de 2023, enquanto o Congresso tenta acelerar o trâmite da primeira proposta para tentar concluir o assunto”. afirmou.
Meza acrescenta que não se pode descartar uma hipótese mais pessimista sobre os possíveis desdobramentos que a crise possa gerar nos próximos meses.
“Não sabemos quanto tempo as organizações podem seguir enfrentando o governo. Se a mobilização se mantiver por meses, poderemos enfrentar desabastecimento e outros problemas em muitas cidades, não só por esses conflitos internos como também pelas consequências dos conflitos globais. Além disso, como muitos países da América Latina, o Peru tem um histórico de saídas autoritárias de crises políticas quando a elite se vê encurralada. Não estou afirmando que isso vai acontecer, mas é uma possibilidade que não deve ser menosprezada”, alerta o professor.