Em 1948, 12 anos após os últimos Jogos, o mundo desportivo ainda não se havia recuperado. Nem a Alemanha nem o Japão foram convidados para os Jogos Olímpicos de Londres e a União Soviética declinou de participar. A arrasada capital inglesa não estava recomposta dos estragos da Segunda Guerra Mundial.
Londres não havia construído acomodações ou estádios para os que seriam considerados “Os Jogos da Austeridade”. Os atletas masculinos ficaram alojados nos barracões da Royal Air Force, enquanto as mulheres foram acomodadas em dormitórios de internatos. Pediu-se que todos trouxessem suas próprias toalhas, travesseiros, roupas de cama, etc. Com o racionamento do pós-guerra ainda em vigor, surgiram reclamações quanto à qualidade e à quantidade da comida. A equipe holandesa, instalada com outras quatro delegações ao redor de Londres, tomava o trem até a estação Wembley, caminhando a pé até o estádio, a fim de participar das provas.
Mesmo assim, os Jogos de 1948 tiveram público recorde. E surgiu uma inverossímil estrela olímpica: Fanny Blankers-Koen da Holanda, 1m82 de altura e 30 anos de idade, imponente embora tímida, ruiva, mãe do menino Jantje, de 6 anos, e da menina Fanneke, de 3. Ela ficou conhecida como a “Dona de Casa Voadora” ou, mais inteligentemente, “A Holandesa Voadora”: conquistou 4 medalhas de ouro no atletismo, façanha que levou a cabo já estando grávida do seu terceiro filho.
Nascida Francina Elsje Koen em 26 de abril de 1918, na província de Utrecht, demonstrou desde cedo habilidades atléticas, mas acabou no esporte após seu técnico de natação tê-la alertado de que a equipe nacional dessa modalidade estava completa. Aos 17 anos, começou a competir em eventos atléticos, logo estabelecendo um recorde nacional para os 800 metros. Essa prova foi suspensa após os Jogos de Amsterdã, em 1928, após seis das nove concorrentes desmaiarem de exaustão. Na oportunidade, a alemã Lina Radke ganhara os 800 metros. A prova só voltaria a ser disputada em Roma, em 1960.
Um ano depois, classificou-se nas eliminatórias para os Jogos Olímpicos tanto no salto em altura como no revezamento 4×100 metros. Embora não tenha conquistado nenhuma medalha, o simples fato de ter conseguido um autógrafo de seu herói, a estrela afro-americana Jesse Owens, cuja performance ela igualaria ao obter 4 medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Londres, seria, como diria mais tarde, a sua grande relíquia olímpica. “Quando voltei a encontrá-lo nos Jogos de Munique, 1972”, lembrou, “disse-lhe que ainda guardava o autógrafo. Eu sou Fanny Blankers-Koen. E ele respondeu: ‘Você não precisa me dizer quem é. Sei de tudo a seu respeito’. Isso não é incrível? Owens sabia quem eu era”.
Fanny chegou ao pico como corredora quando se casou em 1940 com seu treinador, Jan Blankers, ex-campeão do salto triplo e 14 anos mais velho. Apesar da guerra, internamente as competições continuaram e Blankers-Koen estabeleceu seis recordes mundiais – no salto em altura, no salto em distância, 80 metros com barreiras, 100 metros rasos, revezamentos 4×100 e 4×200 metros – de 1942 a 1944, todos conquistados após o nascimento de seu filho e em meio a críticas de egoísmo e abandono da “função de mãe”.
Após a suspensão de dois jogos – 1940 e 1944 – por causa da guerra, Fanny partiu para Londres e deixou os filhos em em Amsterdã. “Recebi à época muitas cartas maledicentes” lembrou, “pessoas escrevendo que eu deveria ficar em casa cuidando das crianças”, contou ao New York Times em 1982. “Eu era uma boa mãe. Não tinha tempo a não ser para o meu lar e os treinamentos. Compras só de comida e nada de roupas. Um jornalista escreveu que eu era muito velha para competir, de modo que deveria ficar em casa cuidando dos filhos. Já em Londres, eu apontei o dedo para ele e disse ‘Vou lhe mostrar’.”
Blankers-Koen realizou uma partida forte nos 100 metros rasos, irrompendo pela pista para conquistar sua primeira medalha de ouro. Exagerando na qualificação de Blankers-Koen como a “Dona de Casa Voadora”, a cobertura da imprensa não escondia a discriminação de gênero por outras vias. Um repórter escreveu que ela corria “como se estivesse afastando as crianças da despensa”. Outro observou que ela “voava sobre as barreiras como se corresse para a cozinha a fim de resgatar os biscoitos que estavam no forno a ponto de torrar-se.”
Ela não pretendia correr a semifinal dos 200 metros. Aos prantos, no vestiário do estádio de Wembley, minutos antes do tiro de partida, disse ao marido que havia conquistado o bastante e que queria ir para casa. Jan pacientemente convenceu-a a ficar e continuar disputando. “Vá para a pista, tente ir para a final e aí sim…”. Em 6 de agosto, massacrou as rivais, batendo a britânica Audrey Williamson com diferença de 0,7 segundo.
Naquela noite, de volta aos seus aposentos, disse ao marido: “Já sou uma campeã olímpica e não quero mais correr.” Afirmou ter alcançado seu objetivo e que iria cuidar de suas crianças. Jan ordenou que fosse para a cama e descansasse para as séries dos 80 metros com barreiras do dia seguinte. Classificou-se com facilidade. A final, no entanto, foi sua corrida mais dura até então, afirmando ter se sentido intimidada pela forma com que a favorita britânica Maureen Gardner se apresentou nas disputas anteriores.
A saída foi ruim. “Meus joelhos tremiam. Toquei na 5ª barreira, meu estilo se descompôs e eu me desequilibrei como se estivesse bêbada.” Blakers-Koen e Gardner pareciam romper a fita literalmente pescoço a pescoço. Pela reação da equipe de solo, parecia que a rival tinha vencido. Na chegada, inclinou o peito à frente o suficiente para ganhar de Maureen por milímetros. Inclinou-se tão baixo que a fita de chegada cortou seu pescoço e o sangue gotejou na camiseta.
Na noite anterior à prova final do revezamento 4×100, foi a uma festa no West End acompanhada de jornalistas e saboreou uma taça de vinho. Na manhã seguinte foi às compras, passando um bom tempo a escolher uma capa de chuva. Em seguida tomou um trem lotado que a deixou em Wembley. Suas colegas de equipe do revezamento já estavam se aquecendo na pista, em pânico com a sua demora. Fanny havia sido escalada para fechar o revezamento. Os esforços de Xenia Stad de Jong, Gerda van der Kade-Koudijs e Nettie Witziers-Timmer só puderam deixá-la em quarto lugar quando recebeu o bastão, alguns metros atrás da australiana Joyce King. “Achei que não daria para ganhar a prova, de forma alguma. Então, faltando 50 metros, pensei: ‘Talvez tenha alguma chance’. Corri mais rápido do que jamais havia corrido, aproximando-me cada vez mais de Joyce, até que, a poucos metros da fita, já estava liderando”.
Acabou suplantando as três medalhas olímpicas de ouro de Babe Didrikson dos Jogos de Los Angeles, 1932. Como detentora dos recordes mundiais do salto em altura e do salto em extensão à época, seria quase certo que poderia acrescentar mais duas medalhas de ouro a sua coleção em 1948, porém o regulamento olímpico só permitia a participação em no máximo três provas individuais.
Quando a campeã regressou à Holanda, recebeu apenas uma bicicleta doada pelo povo de Amsterdã.
Fanny Blankers-Koen foi indicada como a Atleta Feminina do Século 20 pela International Association of Athletics Federations em 1999. Ela demoliu o machismo, os preconceitos de gênero, idade e maternidade e ampliou a legitimidade do esporte olímpico feminino. Blankers-Koen morreu em 2004, aos 85 anos.