Sábado, 15 de novembro de 2025
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Conhecida como ‘Sangue na Água’, a partida de semifinal de polo aquático dos Jogos Olímpicos de Melbourne em 1956 entre Hungria e União Soviética não foi só uma disputa das mais violentas da história do esporte mundial. Marcado por ameaças e hostilidades desde o primeiro minuto, o jogo do dia 6 de dezembro foi também um duelo em que o subtexto foi protagonista: um mês antes, o Exército Vermelho soviético invadira Budapeste para reprimir — deixando 2.500 soldados húngaros mortos — a revolução que se insurgia contra o governo socialista de Moscou.

Em plena Guerra Fria, a tensão ultrapassou o campo da política e era palpável na piscina quando as duas equipes entraram para disputar a vaga na final. A intenção inicial era que o espírito do fair play olímpico se sobrepusesse à rivalidade, mas o que aconteceu foi o contrário. O sangue de Budapeste coloriu as águas da piscinas australianas após o jovem e prodigioso atacante húngaro Ervin Zador ter sido levado direto do ginásio para o posto médico.

Os atletas húngaros só tomaram consciência da dimensão do levante popular em seu país — e da força com que os tanques soviéticos transitavam por Budapeste — quando pisaram na Austrália para disputar as Olímpiadas. Na realidade, a seleção húngara deixou o país tendo a impressão de que a revolta, deflagrada em 23 de outubro, havia sido bem sucedida: o premiê Imre Nagy havia rompido com o Pacto de Varsóvia e declarado internacionalmente a intenção do país de tornar-se independente dos soviéticos.

A seleção olímpica começou a viagem rumo à Austrália em 30 de outubro. Até 20 de novembro, quando pisou em Melbourne, não tinha notícias da terra natal. Dessa maneira, não souberam que, dias depois da partida, em 4 de novembro, Moscou invadira a Hungria, prendendo milhares de pessoas, inclusive o primeiro-ministro.

O jogo de polo

Com agarra-agarras, empurrões e puxões de toda sorte visíveis aos olhos do público, a própria dinâmica do polo aquático o envolve como um esporte violento em si — no final dos anos 1800, a modalidade chegou a ser banida dos campi universitários norte-americanos por ser considerado “bárbaro demais”. No dia 6 de dezembro de 1956, o esporte voltou às raízes.

O encontro que opôs húngaros e soviéticos, talvez as duas melhores seleções mundiais da modalidade, só veio a acontecer na rodada semifinal do torneio. A Hungria era a superpotência, a equipe a ser batida; nas quatro edições anteriores, ganhara três ouros e uma prata.

“Eu vi estrelas”, relembra Ervin Zador (Wikicommons) 

Apelidada de 'sangue na água', partida aconteceu enquanto tanques do Exército Vermelho reprimiam levante popular húngaro

Além da rivalidade do retrospecto esportivo, o contexto político adicionava outro ingrediente à disputa. “Sentíamos que estávamos jogando não só por nós mesmos, mas para cada húngaro”, disse posteriormente o jogador Ervin Zador à BBC. E completou: “A partida foi a única maneira de que dispúnhamos para lutar olhando para trás, para o que havia se passado”.

A multidão que assistiu à partida torcia pela Hungria: havia húngaros expatriados, já que sete anos antes o país passara formalmente ao controle soviético, além de australianos e norte-americanos, inimigos ideológicos da URSS durante a Guerra Fria. “Hajra Magyarok!” (Vai, Hungria!), gritavam os torcedores.

Sangue na água

A tática adotada pelos húngaros, contada pelo próprio Ervin Zador, era tirar os russos do sério. Fluentes no idioma, que haviam sido obrigados a estudar desde a infância, os húngaros insultavam e provocavam os adversários. Em menos de um minuto de jogo, o primeiro soviético foi mandado para o castigo temporário. Dentro da água, alheios às regras, seguiam-se: socos, pontapés, caneladas, agressões de todo o tipo por debaixo da superfície da água, empurrões violentos, cuspidelas, gritos e xingamentos. O árbitro sueco, responsável por fazer zelar a ordem, mal podia atuar.

Dentro da piscina, a seleção húngara abria dois gols de vantagens, em tentos anotados por Zador, a estrela da equipe, que permanecia o tempo todo na mira dos defensores russos. A poucos minutos do fim da partida, o mesmo Zador foi chamado a marcar o atacante Valentin Prokopov, o melhor atleta da equipe — “Eu disse ‘sem problemas, consigo cuidar dele’ ”, relembrou Zador ao diário britânico The Guardian. Ele foi até o adversário e intensificou provocações e xingamentos.

O russo Prokopov não suportou a pressão e extravasou: com a atenção do húngaro voltada para o outro lado da piscina, Prokopov o atingiu no rosto. “Eu vi estrelas”, relembra Zador. Momentos depois, com a torcida ainda mais inflamada, obrigando a polícia a tomar posições para evitar um tumulto maior, o atleta russo, ensanguentado e manchando a piscina de vermelho, foi retirado da água para receber atendimento médico. Imagens do rosto ensanguentado do húngaro rodaram o mundo, o que rendeu à partida a alcunha de “Sangue na água”.

A partida terminou 4 a 0 para os húngaros, que venceriam a Iugoslávia na final pelo placar de 2 a 1 para conquistar a medalha dourada — partida em que Zador, lesionado, ficou impedido de disputar. Após o término das Olímpiadas, muitos húngaros não retornaram ao país e pediram asilo a outras nações. O astro Ervin Zador foi parar em São Francisco, nos Estados Unidos, onde se estabeleceria como técnico de natação. Anos mais tarde, reencontraria o ouro olímpico ao treinar o exímio nadador Mark Spitz.