Conhecida como ‘Sangue na Água’, a partida de semifinal de polo aquático dos Jogos Olímpicos de Melbourne em 1956 entre Hungria e União Soviética não foi só uma disputa das mais violentas da história do esporte mundial. Marcado por ameaças e hostilidades desde o primeiro minuto, o jogo do dia 6 de dezembro foi também um duelo em que o subtexto foi protagonista: um mês antes, o Exército Vermelho soviético invadira Budapeste para reprimir — deixando 2.500 soldados húngaros mortos — a revolução que se insurgia contra o governo socialista de Moscou.
Em plena Guerra Fria, a tensão ultrapassou o campo da política e era palpável na piscina quando as duas equipes entraram para disputar a vaga na final. A intenção inicial era que o espírito do fair play olímpico se sobrepusesse à rivalidade, mas o que aconteceu foi o contrário. O sangue de Budapeste coloriu as águas da piscinas australianas após o jovem e prodigioso atacante húngaro Ervin Zador ter sido levado direto do ginásio para o posto médico.
Os atletas húngaros só tomaram consciência da dimensão do levante popular em seu país — e da força com que os tanques soviéticos transitavam por Budapeste — quando pisaram na Austrália para disputar as Olímpiadas. Na realidade, a seleção húngara deixou o país tendo a impressão de que a revolta, deflagrada em 23 de outubro, havia sido bem sucedida: o premiê Imre Nagy havia rompido com o Pacto de Varsóvia e declarado internacionalmente a intenção do país de tornar-se independente dos soviéticos.
A seleção olímpica começou a viagem rumo à Austrália em 30 de outubro. Até 20 de novembro, quando pisou em Melbourne, não tinha notícias da terra natal. Dessa maneira, não souberam que, dias depois da partida, em 4 de novembro, Moscou invadira a Hungria, prendendo milhares de pessoas, inclusive o primeiro-ministro.
O jogo de polo
Com agarra-agarras, empurrões e puxões de toda sorte visíveis aos olhos do público, a própria dinâmica do polo aquático o envolve como um esporte violento em si — no final dos anos 1800, a modalidade chegou a ser banida dos campi universitários norte-americanos por ser considerado “bárbaro demais”. No dia 6 de dezembro de 1956, o esporte voltou às raízes.
O encontro que opôs húngaros e soviéticos, talvez as duas melhores seleções mundiais da modalidade, só veio a acontecer na rodada semifinal do torneio. A Hungria era a superpotência, a equipe a ser batida; nas quatro edições anteriores, ganhara três ouros e uma prata.
Além da rivalidade do retrospecto esportivo, o contexto político adicionava outro ingrediente à disputa. “Sentíamos que estávamos jogando não só por nós mesmos, mas para cada húngaro”, disse posteriormente o jogador Ervin Zador à BBC. E completou: “A partida foi a única maneira de que dispúnhamos para lutar olhando para trás, para o que havia se passado”.
A multidão que assistiu à partida torcia pela Hungria: havia húngaros expatriados, já que sete anos antes o país passara formalmente ao controle soviético, além de australianos e norte-americanos, inimigos ideológicos da URSS durante a Guerra Fria. “Hajra Magyarok!” (Vai, Hungria!), gritavam os torcedores.
Sangue na água
A tática adotada pelos húngaros, contada pelo próprio Ervin Zador, era tirar os russos do sério. Fluentes no idioma, que haviam sido obrigados a estudar desde a infância, os húngaros insultavam e provocavam os adversários. Em menos de um minuto de jogo, o primeiro soviético foi mandado para o castigo temporário. Dentro da água, alheios às regras, seguiam-se: socos, pontapés, caneladas, agressões de todo o tipo por debaixo da superfície da água, empurrões violentos, cuspidelas, gritos e xingamentos. O árbitro sueco, responsável por fazer zelar a ordem, mal podia atuar.
Dentro da piscina, a seleção húngara abria dois gols de vantagens, em tentos anotados por Zador, a estrela da equipe, que permanecia o tempo todo na mira dos defensores russos. A poucos minutos do fim da partida, o mesmo Zador foi chamado a marcar o atacante Valentin Prokopov, o melhor atleta da equipe — “Eu disse ‘sem problemas, consigo cuidar dele’ ”, relembrou Zador ao diário britânico The Guardian. Ele foi até o adversário e intensificou provocações e xingamentos.
O russo Prokopov não suportou a pressão e extravasou: com a atenção do húngaro voltada para o outro lado da piscina, Prokopov o atingiu no rosto. “Eu vi estrelas”, relembra Zador. Momentos depois, com a torcida ainda mais inflamada, obrigando a polícia a tomar posições para evitar um tumulto maior, o atleta russo, ensanguentado e manchando a piscina de vermelho, foi retirado da água para receber atendimento médico. Imagens do rosto ensanguentado do húngaro rodaram o mundo, o que rendeu à partida a alcunha de “Sangue na água”.
A partida terminou 4 a 0 para os húngaros, que venceriam a Iugoslávia na final pelo placar de 2 a 1 para conquistar a medalha dourada — partida em que Zador, lesionado, ficou impedido de disputar. Após o término das Olímpiadas, muitos húngaros não retornaram ao país e pediram asilo a outras nações. O astro Ervin Zador foi parar em São Francisco, nos Estados Unidos, onde se estabeleceria como técnico de natação. Anos mais tarde, reencontraria o ouro olímpico ao treinar o exímio nadador Mark Spitz.